quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Recurso contra decisão que negou vigência à Lei da Ficha Limpa


Nessa semana, o STF deferiu liminar em Reclamação para suspender julgamento do TRE-MA que afastou a aplicação da Lei da Ficha Limpa para candidato que havia sido condenado em 2008 por captação ilícita de sufrágio (vulgo "compra de votos"). Considerou o STF que o TRE-MA desrespeitara o decidido nas ADCs 29, 30 e ADI 4578. Na última terça, o TSE reafirmou a posição do STF.
O TRE-AL , em agosto, havia adotado a posição do TRE-MA. O julgamento foi combatido por Recurso Especial do MP.  Abaixo, os principais trechos do recurso oferecidos pelo Procurador Regional Eleitoral. 



I – SÍNTESE DOS FATOS

Trata-se de recurso contra acórdão do TRE-AL que reformou sentença que julgara procedente ação de impugnação de mandato eletivo proposta pelo Ministério Público Eleitoral em face de   xxx
 
Na ação, os autor pleiteou o indeferimento da candidatura do réu em virtude da presença da causa de inelegibilidade prevista no art. 1º, I, “d” da LC 64/90, na redação dada pela LC 135/2010, segundo o qual são inelegíveis “os que tenham contra sua pessoa representação julgada procedente pela Justiça Eleitoral, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão colegiado, em processo de apuração de abuso do poder econômico ou político, para a eleição na qual concorrem ou tenham sido diplomados, bem como para as que se realizarem nos 8 (oito) anos seguintes”. Afirma que a questão da retroatividade da lei já foi resolvida pelo STF nas ADC 29, 30 e ADI 4578.
 
O douto magistrado de primeiro grau, em sentença de fls. 800/808, firme na decisão do STF proferida nas ADCs 29, 30 e ADI 4578, definiu que as alterações feitas pela LC 135/2010 valem para o pleito eleitoral atual e para os subsequentes. Destacou quena imposição da sanção não há retroatividade propriamente dita, mas retrospectividade e que não há ofensa à coisa julgada nem a direito adquirido.
Em recurso ao TRE-AL, o candidato alegou que a sentença ofendeu a coisa julgada, já que a “pena” de três anos imposta ao candidato havia sido cumprida integralmente antes da vigência da LC 135/2010. Ressaltou a LC 135/2010 só poderia gerar efeitos nas eleições de 2012 e que concorreu no pleito de 2008 porque já havia cumprido a sanção de três anos.
   
Por 4x3, optou o TRE-AL por afirmar que o STF, no exercício do controle concentrado de constitucionalidade feito nas ações citadas, não teria se manifestado sobre casos análogos ao dos autos, razão pela qual , razão pela qual o TRE-AL teria liberdade para decidir. Destacou que “com efeito, faz-se imperioso verificar o amoldamento do caso dos autos dos contornos do julgamento das ADC's 29 e 30 pelo STF em março passado, que ali foram postos em abstrato para desta forma, analisar a incidência, ou não, de seus efeitos”(fls. 976).
Decidiu o tribunal a quo pela inaplicabilidade do art. 1, I, “d”da LC 135/2010d afirmando que :
Confrontando o caso paradigma com a situação em tela, constato e afirmo, com as vênias de estilo, que o acórdão da lavra do ilustre ministro Luiz Fux não discorreu efetivamente sobre a aplicação dos prazos de inelegibilidade da lei nova a processos marcados pelo instituto da coisa julgada, não servindo , portanto, como precedente necessário para a matéria sub examine. Tanto isso é verdade, que ao tratr acerca de caso idên6ico ao dos autos, quase três meses após a decisão proferida pelo Pretório Excelso, o Egrégio Tribunal Superior Eleitoral, em processos da relatoria dos também Ministros da Suprema Corte, Maro Auréio (AgR-RO 4769-14 de 10/05/2012) e Carmén Lúcia (RESPE n. 485.174 de 08/05/2012), afastou a aplicação do precedente do STF, impedindo a aplicação da Lei Complementar n. 135 a condenações em inelegibilidade anteriores à sua vigência”(fls. 977)



II – DA TEMPESTIVIDADE


O acórdão recorrido (nº. 8.768) foi proferido em 21.08.2012, sendo a Procuradoria Regional Eleitoral dele intimada na mesma data. Nos termos do art. 11 da LC 64/90, o dies ad quem para interposição do recurso é 24.08.2012, data em que devidamente protocolado o instrumento recursal.


III – DO CABIMENTO DO RECURSO


O manejo desse Recurso Especial fundamenta-se no disposto no art. 121, § 4º, I e II da Constituição Federal e art. 11, §2º, da LC 64/90. Eis os dispositivos:

Art. 121. Omissis...
(…)
§ 4º. Das decisões dos Tribunais Regionais Eleitorais somente caberá recurso quando:
I – forem proferidas contra disposição expressa desta Constituição ou de lei;
II - ocorrer divergência na interpretação de lei entre dois ou mais tribunais eleitorais;

* * *

Art. 11. Na sessão do julgamento, que poderá se realizar em até 2 (duas) reuniões seguidas, feito o relatório, facultada a palavra às partes e ouvido o Procurador Regional, proferirá o Relator o seu voto e serão tomados os dos demais Juízes.(...)
§ 2° Terminada a sessão, far-se-á a leitura e a publicação do acórdão, passando a correr dessa data o prazo de 3 (três) dias, para a interposição de recurso para o Tribunal Superior Eleitoral, em petição fundamentada.

Como se demonstrará a seguir, o julgamento ora atacado, negando autoridade ao julgamento do STF nas ADCs 29, 30 e ADI 4578, ofendeu o disposto no art. 1º, I, “d” da LC 64/90 e no art. 102, §2º, da CF/88. Divergiu, ainda, o TRE-AL de interpretação fixada pelo TRE-SP no RECURSO ELEITORAL N° 73-70.2012.6.26.0146, proferido em 03/08/2012 (cópia do acórdão segue anexa).

IV – DO PREQUESTIONAMENTO E DA DIVERGÊNCIA ENTRE TRIBUNAIS ELEITORAIS

O prequestionamento se opera pela "manifestação do Tribunal a respeito de determinada questão posta em discussão, pouco importando a referência explícita ou não ao artigo de lei que seja pertinente"1. Como se verá a seguir, o TRE-AL tratou expressamente da não aplicação da LC 135/2010 - em especial da redação dada ao art. 1º, I, d, da LC 64/90 - a fatos que lhe são anteriores e da ignorou a incidência art. 102, §2º, da CF/88. Quanto a esses dois pontos, o acórdão atacado adotou interpretação divergente da escolhida pelo TRE-SP. Vejamos.


V - DA DECISÃO DO STF NAS ADCS 29, 30 E 4578

Tratou o Pretório Excelso da eventual ofensa da LC 135/2010 a direito adquirido e à coisa julgada no julgamento das ADCs 29 e 30 e da ADI 4578.
Reza o art. 102, §2º, da CF/88 que as decisões do STF tomadas em controle concentrado “produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal”. O norte a ser seguido pelos tribunais foi posto nos julgamentos das ADCS 29, 30 e da ADI 4578. Neles, o STF resolveu que a LC 135/2010 poderá estender prazos de inelegibilidade, ainda que cumprida a sanção imposta com base na legislação anterior. Afastou-se expressamente a possibilidade de se invocar a autoridade da coisa julgada e o direito adquirido contra a aplicação da lei. Eis trecho relativo ao tema da ementa do acórdão que julgou as três ações:

1. A elegibilidade é a adequação do indivíduo ao regime jurídico – constitucional e legal complementar – do processo eleitoral, razão pela qual a aplicação da Lei Complementar nº 135/10 com a consideração de fatos anteriores não pode ser capitulada na retroatividade vedada pelo art. 5º, XXXV, da Constituição, mercê de incabível a invocação de direito adquirido ou de autoridade da coisa julgada (que opera sob o pálio da cláusula rebus sic stantibus) anteriormente ao pleito em oposição ao diploma legal retromencionado; subjaz a mera adequação ao sistema normativo pretérito (expectativa de direito)”.

No corpo do acórdão, o STF manifestou-se sobre a possibilidade da LC 135/2010 ampliar prazos de inelegibilidade decorrente de decisão judicial nos casos em que já haviam sido cumpridos. In verbis:

É essa característica continuativa do enquadramento do cidadão na legislação eleitoral, aliás, que também permite concluir pela validade da extensão dos prazos de inelegibilidade, originariamente previstos em 3 (três) , 4 (quatro) ou 5 (cinco) anos, para 8 (oito) anos, nos casos em que os mesmos encontram-se em curso ou já se encerraram. Em outras palavras, é de se entender que, mesmo no caso em que o indivíduo já foi atingido pela inelegibilidade de acordo com as hipóteses e prazos anteriormente previstos na Lei Complementar nº 64/90, esses prazos poderão ser estendidos – se ainda em curso – ou mesmo restaurados para que cheguem a 8 (oito) anos, por força da lex nova, desde que não ultrapassem esse prazo. Explica-se: trata-se, tão-somente, de imposição de um novo requisito negativo para a que o cidadão possa candidatar-se a cargo eletivo, que não se confunde com agravamento de pena ou com “bis in idem”. Observe-se, para tanto, que o legislador cuidou de distinguir claramente a inelegibilidade das condenações – assim é que, por exemplo, o art. 1º, I, “e”, da Lei Complementar nº 64/90 expressamente impõe a inelegibilidade para período posterior ao cumprimento da pena.
Tendo em vista essa observação, haverá, em primeiro lugar, uma questão de isonomia a ser atendida: não se vislumbra justificativa para que um indivíduo que já tenha sido condenado definitivamente (uma vez que a lei anterior não admitia inelegibilidade para condenações ainda recorríveis) cumpra período de inelegibilidade inferior ao de outro cuja condenação não transitou em julgado.
Em segundo lugar, não se há de falar em alguma afronta à coisa julgada nessa extensão de prazo de inelegibilidade, nos casos em que a mesma é decorrente de condenação judicial. Afinal, ela não significa interferência no cumprimento de decisão judicial anterior: o Poder Judiciário fixou a penalidade, que terá sido cumprida antes do momento em que, unicamente por força de lei – como se dá nas relações jurídicas “ex lege” –, tornou-se inelegível o indivíduo. A coisa julgada não terá sido violada ou desconstituída”.(g.n)

Vale lembrar que o pedido da ADC 29 tratava justamente da aplicação da LC 135 a fatos ocorridos antes do advento desse diploma legal. Parece evidente, assim, que faz parte do dispositivo do acórdão a decisão sobre a suposta ofensa à coisa julgada. Ainda que não fizesse, não é demais lembrar que desde o julgamento da Reclamação 1987-0 entende o STF que não existe obter dicta em julgamento concentrado de constitucionalidade. Há, no caso, o o que o STF chamou de transcendência dos motivos da decisão, aos quais também é agregado efeito vinculante. 
 
Acrescente-se que os precedentes do TSE- citados pelos TRE-AL - proferidos após o STF se manifestar em controle concentrado referiam-se às eleições de 2010 e 2008. Essas foram expressamente postas pelo Supremo além do alcance da chamada “Lei da Ficha Limpa”, como se vê no item 14 da ementa do julgamento:
14. Inaplicabilidade das hipóteses de inelegibilidade às eleições de 2010 e anteriores, bem como para os mandatos em curso, à luz do disposto no art. 16 da Constituição. Precedente: RE 633.703, Rel. Min. GILMAR MENDES (repercussão geral).”

Não houve, portanto, ao contrário do afirmado pelo TRE-AL, nenhuma desobediência do TSE em relação à decisão do STF. Para as eleições de 2012, a decisão do STF há de ser respeitada, sob pena de ofensa ao art. art. 102, §2º, da CF/88.

VI - Da divergência na interpretação de lei entre o TRE-AL e o TRE-SP e da ofensa ao art. 1º, I, “d” da LC 135/2010 e ao art. 102, §2º da CF

Exposto o entendimento do STF sobre o tema, torna-se evidente que o TRE-AL, ao negar a possibilidade de aplicação da LC 135/2010 a fatos pretéritos, contrariou expressamente o art. 1º, I, “d” da LC 64/90, segundo o qual são inelegíveis “os que tenham contra sua pessoa representação julgada procedente pela Justiça Eleitoral, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão colegiado, em processo de apuração de abuso do poder econômico ou político, para a eleição na qual concorrem ou tenham sido diplomados, bem como para as que se realizarem nos 8 (oito) anos seguintes.”
Posição diametralmente oposta foi adotada pelo TRE-SP acerca do alcance da LC 135/2010 a fatos supostamente cobertos pela coisa julgada. Em 03/08/2012, o tribunal paulista julgou o RECURSO ELEITORAL N° 73-70.2012.6.26.0146 (doc. anexo). A recorrente tinha contra si condenação transitada em julgado em 2007 por captação ilícita de sufrágio nas eleições de 2004. Como não havia previsão de sanção de inelegibilidade na condenação, sustentou que coisa julgada impediria a aplicação da LC 135/2010 a seu caso em 2012. A seguir, o trecho pertinente do relatório do acórdão:

Essa recorrente, com efeito, sustentou, em resumo(...) c) em relação ao mérito, fora condenada por captação ilícita de sufrágio, decisão trânsita em julgado em 22 de maio de 2007, no curso da legislatura de 2005/2008; d) por esse motivo tivera o diploma cassado; e) inexistência de causa de inelegibilidade a impedir a sobredita candidatura; f) na época dessa condenação não havia previsão de sanção de inelegibilidade decorrente da Lei Complementar 135/2010; g) após essa condenação fora eleita prefeita de Bento de Abreu no pleito de 2008; h) inadmissibilidade da aplicação da Lei Complementar 135/2010 por violar os princípios da irretroatividade das leis, legalidade, coisa julgada, individualização da pena e presunção de não culpabilidade;”

A tese da recorrente não encontrou guarida no TRE-SP. Esse, diversamente do TRE-AL, afirmou que: a) a decisão tomada pelo STF em controle concentrado tem caráter vinculante; b) a aplicação da LC 135/2010 a fatos pretéritos não ofende a coisa julgada, o direito adquirido ou o ato jurídico perfeito. Abaixo, trecho da decisão do TRE-SP que trata do julgamento do STF:

Portanto, a inelegibilidade sob exame decorre de texto expresso da Lei Complementar 64/1990 e, como comprovado documentalmente ter sido a recorrente condenada em razão de captação ilícita de sufrágio nas eleições de 2004 (decisão transitada em julgado em 8 de junho de 2007), com fundamento no artigo 41-A, da Lei 9.504/1997, fora cassado o correspondente diploma (folhas 50/67). Daí ter sido de rigor o indeferimento do pedido de registro de candidatura”.

Por sinal, para esse deslinde que se impõe no caso sob análise há recente decisório do colendo Supremo Tribunal Federal respeitante às ações declaratórias de constitucionalidade 29 e 30 e direta de inconstitucionalidade 4.578, pelo qual reconhecido o ajustamento da Lei Complementar 64/1990, modificada pela também norma complementar 135/2010, aos preceitos da Carta Magna. Outrossim, por esse acórdão definiu-se que inelegibilidade não é pena e, ainda, ser possível retroatividade para abranger fatos anteriores à respectiva edição.(fls. 05)

Fazendo referência expressa à ementa do julgado do STF o TRE-SP assevera:

Esse aresto, por sinal, está ementado na seguinte conformidade:

AÇÕES DE AÇÃO DECLARATÓRIAS DE CONSTITUCIONALIDADE E DE INCONSTICIONALIDADE EM JULGAMENTO CONJUNTO. LEI COMPLEMENTAR N° 135/10. HIPÓTESES DE INELEGIBILIDADE.(...) CONSTITUCIONALIDADE DA LEI. AFASTAMENTO DE SUA INCIDÊNCIA PARA AS ELEIÇÕES JÁ OCORRIDAS EM 2010 E AS ANTERIORES, BEM COMO E PARA OS MANDATOS EM CURSO.
1. A elegibilidade é a adequação do indivíduo ao regime jurídico - constitucional e legal complementar - do processo eleitoral, razão pela qual a aplicação da Lei Complementar n° 135/10 com a consideração de fatos anteriores não pode ser capitulada na retroatividade vedada pelo art. 5° , XXXV, da Constituição, mercê de incabível a invocação de direito adquirido ou de autoridade da coisa julgada (que opera sob o pálio da cláusula rebus sic stantibus) anteriormente ao pleito em oposição ao diploma legal retromencionado; subjaz a mera adequação ao sistema normativo pretérito (expectativa de direito)” (fls. 6)

Tratando especificamente da eficácia do julgado do STF, o TRE-SP arremata:

Logo, desse modo, após essa declaração de constitucionalidade, esse preceito de lei complementar tem eficácia erga omnes e efeito vinculante.”(fls. 09)

Como se vê, a interpretação adotada pelo TRE-SP é diametralmente oposta a do TRE-AL, o qual, às fls 977, sustentou que “confrontando o caso paradigma com a situação em tela, constato e afirmo, com as vênias de estilo, que o acórdão da lavra do ilustre ministro Luiz Fux não discorreu efetivamente sobre a aplicação dos prazos de inelegibilidade da lei nova a processo marcados pelo instituto da coisa julgada, não servindo portanto, como precedente necessário para a matéria sub examine”.
De um lado, o TRE-AL afirma que quando o “processo que aplicou a inelegibilidade encontra-se encerrado, transitado em julgado e o efeito jurídico da sentença exaurido (..) não há que se cogiar de acréscimos de efeitos novos a fatos passado”(fls. 982). De outro, o TRE-SP, referindo-se ao acórdão do STF nas ADCs 29, 30 e ADI 4578, decidiu que não há ofensa nenhuma a coisa julgada, que inelegibilidade não é pena e que é possível retroatividade para abranger fatos anteriores à edição da LC 135/2010. (fls. 05)
O quanto exposto demonstra que o TRE-AL violou o art. 1º, I, d, da LC 135/2010, e ignorou o art. 102, §2º, da CF, o qual confere eficácia vinculante às decisões definitivas de mérito do STF proferidas em controle concentrado de inconstitucionalidade. Mais: a interpretação adotada pelo TRE-AL diverge frontalmente da escolhida pelo TRE-SP.
Ainda que não se dê efeito vinculante à decisão do STF, há outros motivos para se reformar a decisão do TRE-AL.

DA SUPOSTA OFENSA À COISA JULGADA

As principais premissas implícitas no raciocínio do TRE-AL são as de que inelegibilidade é pena e que a coisa julgada impedira que pena cumprida fosse ressuscitada. Com a devida vênia, inelegibilidade de pena nada tem. Fixo como ponto de partida que não existe definição de “pena” ou de “inelegibilidade” fora do âmbito do direito posto. Dizer que a natureza das coisas é suficiente para aclarar esses conceitos jurídicos é imaginar que no mundo natural seria possível encontrar fisicamente algo semelhante a uma “pena”. As definições de pena e de inelegibilidade, portanto, serão extraídos das normas do sistema.
Começo lembrando que tanto TSE quanto STF já asseveraram que inelegibilidade não é pena:
Inelegibilidade não constitui pena. Possibilidade, portanto, de aplicação da lei de inelegibilidade, Lei Compl. n. 64/90, a fatos ocorridos anteriormente a sua vigência.” (STF - MS 22.087/DF, rel. Min. Carlos Velloso, Pleno, DJ de 10/05/1996, p. 15.132)

A inelegibilidade, assim como a falta de qualquer condição de elegibilidade, nada mais é do que uma restrição temporária à possibilidade de qualquer pessoa se candidatar, ou melhor, de exercer algum mandato. Isso pode ocorrer por eventual influência no eleitorado, ou por sua condição pessoal, ou pela categoria a que pertença, ou, ainda, por incidir em qualquer outra causa de inelegibilidade”(Consulta nº 1.147/DF, rel. Min. Arnaldo Versiani, julgada em 17 de junho de 2010)

A intenção dos que equiparam inelegibilidade a pena é uma só: pleitear a aplicação dos incisos XXXIX, XL e LVII do art. 5º, da CF/88, que estipulam, respectivamente, que “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal” e “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”, e “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
Ainda que fosse possível o alargamento que se pretende dar a institutos próprios do direito penal, a tese de que inelegibilidade seria pena é equivocada. Examinemos a matéria sob o ângulo penal. O que é pena para o direito criminal?
A primeira e óbvia noção para se chegar ao conceito de pena é que ela só nasce do cometimento de ato ilícito. Não por outra razão o Código Penal, ao cominar pena, primeiro descreve o fato a ser punido(“matar alguém”, “subtrair algo mediante violência ou grave ameaça” e assim por diante) para depois dar-lhe a reprimenda. O art. 121 do CP, por exemplo, reza o seguinte:

Art. 121. Matar alguém:
Pena - reclusão de 06 a 20 anos

As inelegibilidades criadas pela LC 135/2010 são como as penas? Nascem elas sempre de ato ilícito? Não.
A LC 135/2010, traz casos, como os do art. 1º, k e q em que o simples exercício de direito, como o de renunciar e o de se exonerar, acarreta inelegibilidade. É possível considerar ilícitos os atos dos governantes que renunciam ou dos membros do MP e do Judiciário que pedem exoneração ou aposentadoria voluntária? A resposta a essa pergunta, por óbvio, é negativa. Ora, se inelegibilidade pode surgir do exercício do direito, como considerá-la pena?
Tem mais. Há inelegibilidades nascidas do mero exercício da profissão (como no caso dos membros do MP e da Magistratura), de relação de parentesco do indivíduo com mandatários, ou do analfabetismo. Onde está a ilicitude nesses casos?
Diz a Constituição que a lei regulará a individualização da pena(art. 5º, XLVI). Obedecendo a essa norma, o art. 59 do Código Penal dá nove critérios para o magistrado estabelecer a sanção. Qual é a possibilidade do magistrado graduar a inelegibilidade? Nenhuma. Se a inelegibilidade não pode ser individualizada, poderia ser considerada pena?
Fosse pena, deveria, no caso das relacionadas à sanção criminal, desaparecer com a prescrição da pretensão executória, a qual, nos termos do art. 110 do Código Penal, regula-se pela pena aplicada. A prescrição da pretensão executória impede a execução da pena e da medida de segurança. Apesar da pena ser extinta, o que ocorre com a inelegibilidade? Permanece intacta, assim como os demais efeitos secundários da condenação: a inclusão do nome no rol dos culpados, a revogação do sursis, a caracterização da reincidência se houver crime posterior, a interrupção a prescrição executória quando houver reincidência, a revogação da reabilitação e assim por diante2. Examinemos um exemplo concreto quanto à prescrição da pretensão executória de pena de um ano para o crime de furto. A sanção prescreverá em quatro anos, a teor do art. 109, V, c.c o art. 110. Já a inelegibilidade perdurará por 08 anos.
Como já é possível vislumbrar, a inelegibilidade de pena não tem nada. Mesmo quando oriunda de condenação criminal, é dela mero efeito. Os que equiparam pena e inelegibilidade cometem o equívoco, com a devia vênia, de igualar toda sanção à pena. Nem toda consequência negativa ao cidadão é pena. Faço minhas as palavras de Kelsen, no seu “Teoria Pura do Direito”. Para Kelsen,(1984,71) o Direito é concebido como uma ordem estatuidora de atos de coerção. A proposição jurídica que descreve o Direito toma a forma da afirmação segundo a qual, sob certas condições ou pressupostos pela ordem jurídica determinados, deve-se executar um ato de coerção, pela mesma ordem jurídica especificado. Dentre as espécies de ato de coação(ou sanção) está a pena, a inclusão de nome no rol de culpados e a inelegibilidade. Isso não significa que todos sejam idênticos. Segundo Kelsen, “o conceito de sanção pode ser estendido a todos os actos de coerção estatuídos pela ordem jurídica, desde que com ele outra coisa se não queira exprimir senão que a ordem jurídica, através desse actos, reage contra uma situação de facto socialmente indesejável e, através dessa reação, define a indesejabilidade dessa situação de fato”.
A tese da inelegibilidade como simples efeito da condenação é claramente albergada pelo TSE. Eis o que definiu o tribunal na Consulta 1147-09/2010:

Não se trata, mais uma vez, de perda de direitos políticos, mas, sim, de inelegibilidade que não constitui pena, não se podendo pensar em afastá-la apenas porque, antes da vigência da nova lei, a respectiva condenação não trazia como consequência a inelegibilidade para certas hipóteses. A inelegibilidade não precisa ser imposta na condenação. A condenação é que, por si, acarreta a inelegibilidade. A decisão, por exemplo, de Tribunal de Contas que rejeita as contas de determinado cidadão não o declara inelegível. A inelegibilidade advém do disposto na alínea g do inciso I do art. 1º da LC nº 64/90. E é o que ocorre com todas as demais inelegibilidades, inclusive com as oriundas de processos criminais, de improbidade administrativa ou eleitorais”. (grifo nosso)

Grande parte da doutrina também não trata da inelegibilidade como pena, mas como mero óbice ao exercício da cidadania. Por todos, veja-se o que ensina Pedro Henrique Távora Niess(1994, pp. 5-9):

"Inelegibilidade é uma medida destinada a defender a democracia contra possíveis e prováveis abusos. A inelegibilidade consiste no obstáculo posto pela Constituição ou por lei Complementar no exercício da cidadania passiva, por certas pessoas, em razão de sua condição em face de certas circunstâncias. Se a elegibilidade é é pressuposto do exercício regular do mandato político, a inelegibilidade é a barreira intransponível a ele"

O STF, no julgamento das ADCs 29, 30 e 4578, adotou claramente o entendimento de que inelegibilidade é mera inadequação do indivíduo ao regime jurídico – constitucional e legal complementar – do processo eleitoral”
Como se nota, os conceitos de inelegibilidade e de pena são absolutamente distintos. Diante disso, é possível afirmar que a LC 135/2010 não poderia alcançar fatos que lhe são pretéritos

A LC 135/2010 alcança condutas que lhe são anteriores

Chegamos a uma das mais controversas questões do debate travado no STF: as inelegibilidades previstas na LC 135/2010 podem ser aplicadas a fatos que lhe são anteriores? A resposta só pode ser alcançada se analisarmos as normas constitucionais relativas à aplicação da lei no tempo.
Na esfera penal, a Constituição Federal restringe muitíssimo a aplicação retroativa da lei. Os incisos XXXIX e XL do art. 5º estipulam, respectivamente, que “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal” e que “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”. Tais dispositivos teriam importância para nós se a inelegibilidade fosse pena. Não é, como demonstrado. Deixemos de lado, então, os dois dispositivos e partamos para o exame de outras balizas dadas pela Carta de 1988 para a eficácia temporal das leis.
Em seu art. 5º, XXXVI, a CF/88 assevera que a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”. Vê-se que, ao contrário do que muita gente diz, o ordenamento não fixou como absoluto o princípio da irretroatividade das leis. A nova lei pode tratar de condutas anteriores à sua vigência, desde que não contrarie o direito adquirido, a coisa julgada e o ato jurídico perfeito.
A legislação ordinária também trata do assunto. O art. 6º, caput, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro afirma que “a Lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada.” Examinando o tema, Maria Helena Diniz (2001, p. 78)leciona que “sob a égide da nova lei cairão os efeitos presentes e futuros de situações pretéritas, com exceção do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada”. Acrescenta ela que as normas políticas retroagem, alcançando os atos que estão sob o seu domínio, ainda que iniciados sob o império da lei anterior. É certo dizer, portanto, que a lei disciplina eventos futuros, mas pode referir-se a condutas passadas.
As inelegibilidades previstas na Lei Ficha Limpa só poderão obstar candidaturas a partir do exame do pedido de registro dessas na Justiça Eleitoral para as eleições de 2012, como já decidido pelo STF. Nos termos do art. 11, §10º, da Lei 9.504/97, “as condições de elegibilidade e as causas de inelegibilidade devem ser aferidas no momento da formalização do pedido de registro da candidatura”, o que é feito até 05 de julho do ano da eleição. Quando tais pedidos foram feitos, Ministério Público, candidatos, coligações e partidos puderam oferecer as ações de impugnação de registro de candidatura(AIRCs), previstas no art. 3º da LC 64/90. Mesmo que não fossem oferecidas as ações, a justiça eleitoral poderia recusar-se a registrar candidato se detectasse alguma inelegibilidade.
O exame das condições de elegibilidade da LC 135 em 2012 não se confunde com sua aplicação retroativa. O que há é mero reflexo da eficácia imediata da lei, prevista no art. 6º da Lei de Introdução ao Código Civil, pois a Lei da Ficha Limpa estará sendo aplicada a registros de candidaturas posteriores à sua vigência. A norma fará incidir efeitos sobre fatos passados, possibilitando que esses sejam utilizados para se impedir a obtenção do registro para as eleições de 2012.
À espécie de eficácia em que são analisados efeitos de uma norma a condutas passadas dá-se o nome de retrospectividade. O Min. Fux, discorrendo sobre o assunto no seu voto vencedor nas ADC 29, ADC 30 e ADI 4578 , citou com precisão J.J. Gomes Canotilho para explicar o conceito:

(...) a aplicação da Lei Complementar no 135/10 com a consideração de fatos anteriores não viola o princípio constitucional da irretroatividade das leis. De modo a permitir a compreensão do que ora se afirma, confira-se a lição de J. J. GOMES CANOTILHO (Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 5. edição. Coimbra: Almedina, 2001, p. 261-262), em textual:
[...] Retroactividade consiste basicamente numa ficção: (1) decretar a validade e vigência de uma norma a partir de um marco temporal (data) anterior à data da sua entrada em vigor; (2) ligar os efeitos jurídicos de uma norma a situações de facto existentes antes de sua entrada em vigor. [...]”

O mestre de Coimbra, sob a influência do direito alemão, faz a distinção entre: (i) a retroatividade autêntica: a norma possui eficácia ex tunc, gerando efeito sobre situações pretéritas, ou, apesar de pretensamente possuir eficácia meramente ex nunc, atinge, na verdade, situações, direitos ou relações jurídicas estabelecidas no passado; e (ii) a retroatividade inautêntica (ou retrospectividade): a norma jurídica atribui efeitos futuros a situações ou relações jurídicas já existentes, tendo-se, como exemplos clássicos, as modificações dos estatutos funcionais ou de regras de previdência dos servidores públicos (v. ADI 3105 e 3128, Rel. para o acórdão Min. CEZAR PELUSO).
Como se sabe, a retroatividade autêntica é vedada pela Constituição da República, como já muitas vezes reconhecido na jurisprudência deste Tribunal. O mesmo não se dá com a retrospectividade, que, apesar de semelhante, não se confunde com o conceito de retroatividade mínima defendido por MATOS PEIXOTO e referido no voto do eminente Ministro MOREIRA ALVES proferido no julgamento da ADI 493 (j. 25.06.1992): enquanto nesta são alteradas, por lei, as consequências jurídicas de fatos ocorridos anteriormente – consequências estas certas e previsíveis ao tempo da ocorrência do fato –, naquela a lei atribui novos efeitos jurídicos, a partir de sua edição, a fatos ocorridos anteriormente. Repita- se: foi o que se deu com a promulgação da Emenda Constitucional no 41/03, que atribuiu regimes previdenciários diferentes aos servidores conforme as respectivas datas de ingresso no serviço público, mesmo que anteriores ao início de sua vigência, e recebeu a chancela desta Corte.

A aplicabilidade da Lei Complementar n.o 135/10 a processo eleitoral posterior à respectiva data de publicação é, à luz da distinção supra, uma hipótese clara e inequívoca de retroatividade inautêntica, ao estabelecer limitação prospectiva ao ius honorum (o direito de concorrer a cargos eletivos) com base em fatos já ocorridos”. A situação jurídica do indivíduo – condenação por colegiado ou perda de cargo público, por exemplo – estabeleceu-se em momento anterior, mas seus efeitos perdurarão no tempo. Esta, portanto, a primeira consideração importante: ainda que se considere haver atribuição de efeitos, por lei, a fatos pretéritos, cuida-se de hipótese de retrospectividade, já admitida na jurisprudência desta Corte.

A questão em pauta – se novas inelegibilidades podem recair sobre fatos pretéritos – não estava sendo apreciada pela primeira vez no STF. Em 1990, quando da promulgação da Lei Complementar nº 64/90, revogando a Lei Complementar 5/70, sustentou Pedro Henrique Távora Niess (2000, P. 48) a aplicação imediata para as novas inelegibilidades, mesmo decorrente de fatos anteriores à sua vigência, nos seguintes termos:

Sujeitam-se a ela também os que tenham sido processados e condenados antes da entrada em vigor da Lei Complementar nº 64/90(...) É que o diploma de 1990 tem natureza civil, não tipificando delitos (exceto o art. 25), mas complementando dispositivo constitucional relativo a inelegibilidades, e apanhando, assim, todos aqueles que se enquadrem nas situações nela agrupadas, no momento de sua imposição. Isto não significa ter a lei efeito retroativo, mas sim aplicação imediata”

O TSE, à época, ao julgar os recursos 8.818 e 9.797, decidiu que a inelegibilidade prevista no art. 1º, I, e, da Lei Complementar 64-90, aplica-se às eleições do corrente ano de 1990 e abrange sentenças criminais condenatórias anteriores à edição daquele diploma legal (...) ainda que o fato e a condenação sejam anteriores à vigência”.
Tal entendimento foi ratificado pelo Supremo Tribunal Federal:
CONSTITUCIONAL. ELEITORAL. INELEGIBILIDADE. CONTAS DO ADMINISTRADOR PÚBLICO: REJEIÇÃO. Lei Complementar nº 64/90, art. 1º, I, “g”.
(...)
II. - Inelegibilidade não constitui pena. Possibilidade, portanto, de aplicação da lei de inelegibilidade, Lei Compl. nº 64/90, a fatos ocorridos anteriormente a sua vigência ( MS nº 22087-2, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ 09/04/96)

Decisões dos tribunais à parte, voltemos a examinar a questão à luz da eventual ofensa à segurança jurídica. Tratemos, pois, do tema sob a ótica dos limites constitucionais à retroatividade aplicáveis à hipótese: a coisa julgada, o ato jurídico perfeito e o direito adquirido. Vamos mais longe ainda: examinemos eventual ofensa ao princípio da confiança, segundo o qual, os cidadãos, em virtude da segurança jurídica, devem ter protegida a legítima confiança na permanência das situações jurídicas.
Comecemos pelo ato jurídico perfeito, assim definido pelo art. 6º, § 1º, da Lei de Introdução ao Código Civil: reputa-se ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou. O ato jurídico gerador da possibilidade de se candidatar é o registro de candidatura. Nenhum registro será desconstituído pela LC 135/2010. O que ocorrerá é que as inelegibilidades nela previstas impedirão que novos registros sejam deferidos. Não há, portanto, que se falar em desrespeito ao instituto.
E quanto ao direito adquirido? Segundo o art. 6º, § 2º, da Lei de Introdução ao Código Civil, “consideram-se adquiridos os direitos que o seu titular, ou alguém por ele, possa exercer, como aqueles cujo começo do exercício tenha termo pré-fixo, ou condição preestabelecida inalterável, a arbítrio de outrem”. Imaginar que o direito adquirido possa ser óbice à aplicação da LC 135 corresponde a pensar que haveria direito adquirido a regime jurídico anterior das inelegibilidades. Não existe, como o STF tem afirmado reiteradamente, direito adquirido a regime jurídico. Nesse ponto, vale a pena destacar a lição de Carlos Maximiliano, ex-Procurador Geral da República e ex-ministro do STF(1955, p. 62):

Não há direito adquirido no tocante a instituições, ou institutos jurídicos. Aplica-se logo, não só a lei abolitiva, mas também a que, sem os eliminar, lhes modifica essencialmente a natureza. Em nenhuma hipótese granjeia acolhida qualquer alegação de retroatividade(...)
Seguindo os passos de Maximiliano, o TSE em 2010, na consulta 1147, assim se manifestou sobre a inexistência de direito às causas de inelegibilidade:

As novas disposições legais atingirão igualmente a todos aqueles que, repito, no momento da formalização do pedido de registro da candidatura”, incidirem em alguma causa de inelegibilidade, não se podendo cogitar de direito adquirido às causas de inelegibilidade anteriormente previstas.

Abordemos agora da alegação de ofensa à coisa julgada. Como cediço, a autoridade da coisa julgada não é efeito da sentença, mas uma qualidade que se agrega a seus efeitos. Quando alguém diz que determinado assunto não pode voltar a ser discutido, está apelando para o efeito negativo da coisa julgada. Mas esse abarca somente a matéria tratada no processo findo. Nada tem a ação de impugnação de registro de candidatura (AIRC) a ser manejada em 2012 com a declaração que lá, no processo gerador da condenação que ensejou inelegibilidade, foi feita. O que se discute na AIRC- que será tratada com vagar adiante - é se a condenação – qualquer das elencadas pela LC 135/2010-, existente na época do registro poderia gerar restrição ao direito de ser votado. Imaginar que a coisa julgada na ação criminal, por exemplo, alcançaria as AIRCs oferecidas pelo MP é esquecer dos limites objetivos e subjetivos da coisa julgada. No dizer de Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Arenhart(2003, p. 668)

A declaração qualificada pelo selo da coisa julgada gera uma lei do caso concreto, mas apenas para o caso concreto. Quer dizer que a imutabilidade decorrente da declaração transitada em julgado somente pode dizer respeito ao caso em relação ao qual a declaração foi produzida. Outro caso evidentemente não será regido por aquela declaração judicial. Mais que isso, mesmo para o caso específico, a imutabilidade apenas se manifestará entre as mesmas partes perante as quais a declaração foi obtida, e enquanto permanecerem intocadas as circunstâncias fáticas e jurídicas, como se verá mais adiante, pois somente assim pode-se afirmar que se estará diante do mesmo caso concreto.

As partes, o pedido e a causa de pedir das AIRCs nada tem a ver com a ação geradora de inelegibilidade. Não há, nos estreitos limites dos pedidos de registro, novo julgamento de causa já julgada. Não se está impondo nova sanção, mas avaliando-se o cumprimento da exigências no momento do registro de candidatura.
Sequer há coisa julgada quando se analisam dois registros do mesmo candidato em eleições diversas. Definiu o TSE que as condições de elegibilidade e as causas de inelegibilidade são aferidas a cada pedido de registro do candidato perante a Justiça Eleitoral, não podendo ser invocado eventual deferimento atinente à eleição pretérita(Agravo Regimental em Recurso Especial Eleitoral nº 31511, acórdão de 06/10/2008)
Suponhamos que um candidato, em janeiro de 1989, foi condenado a pena de um ano por crime eleitoral e cumpre essa reprimenda. Em 1990, com o advento da lei LC 64, surge hipótese de inelegibilidade pela prática desse crime. A lei se aplicaria a ele, que cumpriu a pena antes de sua vigência, ou não? Se sim, houve ofensa à coisa julgada, já que a inelegibilidade não estava prevista na condenação anterior? O TSE em casos como esse, declarou a existência de inelegibilidade. Com fundamento no art. 1º, I, “e”, da LC 64/90, ao tratar de candidato condenado criminalmente, com trânsito em julgado, pela prática do art. 329, do CE, em 03/01/89 – antes, portanto, da vigência da LC 64/90 - decidiu o TSE:
INELEGIBILIDADE. LEI 64/90. CRIME ELEITORAL Existente condenação por crime eleitoral, postado em sentença definitiva e, inclusive com o cumprimento da pena pelo candidato, este torna-se inelegível na forma do art. 1º, inciso I, e, da Lei Complementar nº 64/90. Recurso que se nega provimento (Acórdão nº 11.403, Rel. Min. Pedro Acioli)

Vimos que a aplicação da LC 135/2010 a fatos que lhe são anteriores não ofende o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada. Prometi que iria mais longe e examinaria se houve qualquer outra ofensa à segurança jurídica, em especial ao princípio da confiança. Vejamos o que Canotilho afirma sobre esse último(2000, p. 256):

O princípio do estado de direito, densificado pelos princípios da segurança jurídica e da confiança jurídica, implica, por um lado, na qualidade de elemento objetivo da ordem jurídica, a durabilidade e permanência da própria ordem jurídica, da paz jurídico-social e das situações jurídicas; por outro lado, como dimensão garantística jurídico-subjetiva dos cidadãos, legitima a confiança na permanência das respectivas situações jurídicas. Daqui a idéia de uma certa medida de confiança na atuação dos entes públicos dentro das leis vigentes e de uma certa proteção dos cidadãos no caso de mudança legal necessária para o desenvolvimento da atividade de poderes."

A pergunta que se põe é: há expectativa legítima de manutenção do regime anterior de inelegibilidades estipulado pela LC 64/90? Não, não há. Explico.
Em 1994, a Emenda de Revisão n. 4 inseriu no art. 14 da CF/88 o § 9º. Ei-lo:

§ 9º Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta.

A norma, de 1994, frise-se, reflete ordem do poder constituinte derivado para que Lei Complementar estabelecesse novas inelegibilidades para proteção da probidade administrativa, da moralidade para o mandato, levando em conta a vida pregressa do candidato. Como imaginar que dezoito anos depois, em 2012, ano em que valerá a Lei Ficha Limpa segundo o STF, haveria expectativa legítima de manutenção de regime jurídico nascido antes da determinação constitucional presente no art. 14, § 9º? Dizer, nessa hipótese, que expectativa legítima foi atingida é sustentar que o parágrafo nono citado nunca teve eficácia nenhuma. Não existe norma constitucional com eficácia zero.
Tem mais. Quando os cidadãos têm expectativas legítimas, exige-se do Estado que apresente regra de transição razoável sempre que houve mudança legislativa que as ofenda. Apesar de não ofender expectativa legítima nenhuma, a LC 135/2010 ainda previu regra de transição para alguns dos que foram atingidos por ela. Seu art. 3º estipula que “os recursos interpostos antes da vigência desta Lei poderão ser aditados para o fim a que se refere o caput do art. 26-C da LC 64/90, introduzido por esta lei complementar”. O art. 26-C, por sua vez, permite que o tribunal responsável pelo julgamento do recurso contra decisões colegiadas geradoras de inelegibilidade possa, em caráter cautelar, suspender a inelegibilidade.
É possível sustentar, diante desse contexto, que "a segurança jurídica será atacada mortalmente" pela aplicação da LC 135/2010? Ou que o "Estado de Direito corre risco de perecer diante de iniciativas justiceiras como a LC 135/2010"? Ou, como é de se esperar, que "a LC 135 não pode retroagir, pois somente os nazistas teriam coragem de remoer o passado"? Lembremos da piada conhecida como Lei de Godwin: "quanto mais dura uma discussão, maior a probabilidade de que apareça uma comparação com os nazistas ou com Hitler." Impossível esquecer a lição do acerca da reductio ad Hitlerum, um substituto capenga da técnica argumentativa válida do reductio ad absurdum: dizer que alguma idéia teria sido eventualmente compartilhada por Hitler não basta a encerrar a discussão sobre ela (STRAUSS, 1953).
Resumindo: a LC 135/2010 pode sim alcançar fatos que lhe são anteriores. Não há, nesse caso, violação alguma da segurança jurídica. Estarão preservados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido, a coisa julgada e as expectativas legítimas. Foi isso que decidiu o Supremo Tribunal Federal nas ADCs 29 e 30, e na ADIN 4578.

CONCLUSÃO

Do exposto, requer o Ministério Público Eleitora que seja o presente recurso conhecido e provido para que, reformando-se o julgamento atacado, seja indeferido o o registro de candidatura de xxxx

Maceió/AL, 28 de julho de 2012.

Rodrigo Antonio Tenório Correia da Silva
Procurador Regional Eleitoral 
 
1VALADÃO NOGUEIRA, Luiz Fernando. Recurso Especial. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 26
2 Vale ressaltar que a multa também não é atingida pela prescrição executória porque, pelo art. 51 do CP, é considerada dívida de valor.

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