Aproveitarei texto já escrito por mim sobre a natureza do benefício especial para tratar da questão da incidência do teto do serviço público. Eis o que disse em post anterior sobre o BE:
"A discussão jurídica é sempre
limitada pelo texto jurídico. É ele e somente ele quem definirá qual a natureza
jurídica do benefício especial e as normas que lhe serão aplicáveis. Não se
define primeiro a natureza para depois saber qual regra jurídica se aplicará ao
benefício. O caminho a ser feito é o inverso. No momento inicial, verifica-se
como o ordenamento trata o benefício especial. Posteriormente, define-se a classificação,
ou a natureza jurídica, que receberá. Consideremos, para defini-la, a coerência
do sistema jurídico, ou a característica que o sistema ostenta de ter elementos
que guardem entre si relação de coerência, ou de não contradição. Ver-se-á que
tendo o ordenamento como norte, é difícil qualificar o benefício especial como
parte de regime jurídico previdenciário e portanto sujeito à alteração após a
migração.
O
direito ao benefício especial nasce
como eficácia da manifestação expressa e irrevogável de vontade do
servidor público, geradora de eficácia dúplice: a) uma imediata,
consistente na migração de regime e consequente submissão ao teto do
RGPS e diminuição da base de cálculo de contribuição previdenciária; b)
outra protraída, que corresponde ao recebimento do benefício especial
caso o servidor se aposente pelo regime de previdência da União. Feita a
opção,
calcula-se o benefício especial, como determina o art. 3º da Lei
12618/12. Desse
momento em diante, o benefício especial passa a ser reajustado pelo INPC
e
percebido no momento da aposentadoria.O art. 3o , § 8o da Lei 12681/16, que define o benefício especial, assevera que "o exercício da opção a que se
refere o inciso II do caput é irrevogável e irretratável, não
sendo devida pela União e suas autarquias e fundações públicas qualquer
contrapartida referente ao valor dos descontos já efetuados sobre a base de
contribuição acima do limite previsto no caput deste
artigo". Ora se nada será pago como contrapartida relativa ao valor dos
descontos sobre base superior ao teto do RGPS, evidente que o benefício
especial não nasce desse ato. E se não nasce de contribuições
previdenciárias, obviamente não há de ser considerado benefício
previdenciário.
Dois pontos reforçam a tese: a) o servidor perderá o direito ao benefício especial
caso deixe o regime da União; b) os benefícios do regime próprio de previdência
social são, conforme o art. 5º da Lei 9.717/98, os mesmos do RGPS. Nesse, não há nada semelhante ao benefício especial.
Ainda
no que toca à manifestação de
vontade, o art. 2º, parágrafo único da Lei 8666/91, aplicável
analogicamente à hipótese, determina que considera-se
contrato todo e qualquer ajuste entre administração pública e
particulares, em
que haja um acordo de vontades para a formação de vínculo e a
estipulação de
obrigações recíprocas, seja qual for a denominação utilizada. No caso em
pauta,
há contrato de adesão e uma relação sinalagmática entre servidor e a
União. De um lado, o servidor terá como vantagem o recebimento do
benefício especial e a redução da contribuição. A União, de seu turno,
terá como vantagem o fato de não precisar
pagar a contribuição de 22% sobre o subsídio do servidor, que lhe são
exigidos
hoje(art. 8o da Lei 10887/04). Em vez disso, pagará somente 22% sobre o teto do RGPS.
Ademais,
a União alega não ter lastro financeiro para pagar esses 22%, o que a
obriga a, para honrá-los, emitir títulos da dívida pública federal,
remunerados de uma de três maneiras: a) por Selic; b) por um combinação
de IPCA e taxa pré-contratada; c) por uma taxa pré-fixada. O benefício
especial é reajustado pelo INPC e só será pago se o servidor se
aposentar pelo regime da União. Logo, a União troca uma dívida presente,
certa e reajustada por Selic - os 22% que deveria pagar - por outra
futura, incerta e reajustada pelo INPC(o benefício especial), índice
muito menor que os usados para remunerar os que emprestam dinheiro à
União. A incerteza do pagamento nasce das possibilidades do servidor não
se aposentar na União, exonerar-se, ou falecer sem deixar herdeiros
necessários. Em qualquer dessas circunstâncias, não será necessário à
União pagar o benefício especial.
Com
a opção do servidor pela migração, nasce ato jurídico perfeito cuja
eficácia é dúplice: a) a submissão ao teto do RGPS ; b) o direito ao
benefício especial, cujo gozo depende da aposentadoria. Temos aqui o
conceito firmado no art. 6º , § 1º, da Lei de Introdução às Normas do
Direito Brasileiro, segundo o qual reputa-se ato jurídico perfeito o já
consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou. Modificar o
benefício especial, após a manifestação do servidor pela migração – a
qual é irrevogável e irretratável, segundo o art. 3º da Lei 12618/12 – é
ignorar a proteção conferida ao ato jurídico perfeito pelo art. 5º,
XXXVI da CF e chancelar desrespeito à boa-fé objetiva. Afinal,
permitir-se-ia ao Estado tirar proveito da migração – já que seus custos
serão reduzidos – e não dar cumprimento à oferta que motivou o servidor
a migrar.
Importante
lembrar que o STF, na Súmula Vinculante 1, decidiu que “ofende a
garantia constitucional do ato jurídico perfeito a decisão que, sem
ponderar as circunstâncias do caso concreto, desconsidera a validez e a
eficácia de acordo constante de termo de adesão instituído pela Lei
Complementar nº 110/2001”. Nesse acordo, o trabalhador aceitava
determinada complementação de correção monetária nas contas vinculadas.
Alguns, porém, tentaram ainda discuti-la em juízo. Para o STF, o acordo,
concretizado por meio de adesão, impedia a discussão em virtude da
proteção conferida pelo ato jurídico perfeito. Ora, se à adesão ao
acordo do FGTS reconheceu-se a eficácia própria do ato jurídico
perfeito, a mesma postura se espera do STF em relação à adesão à
migração com recebimento de benefício especial. A imutabilidade do
benefício especial parece afastar-lhe ainda mais da natureza de mero
elemento de regime jurídico previdenciário.
Acrescente-se
que a migração não leva o servidor, ao contrário do que usualmente se
diz, a regime de previdência novo. O regime é exatamente o mesmo – o
RPPS - mas com a limitação do valor do benefício previdenciário ao teto
do RGPS. Se não se cria regime previdenciário novo, seria possível
considerar que haveria novo benefício previdenciário, o benefício
especial? Parece mais respeitoso à coerência do ordenamento considerar
que o benefício especial de previdenciário pouco tem.
Os
que defendem tese oposta poderiam dizer que o benefício especial é
previdenciário porque só é usufruído na aposentadoria e é calculado
segundo o tempo de contribuição. Quanto ao primeiro ponto, essencial
lembrar que embora o gozo se dê na aposentadoria, a aquisição do direito
ocorre na migração. Já quanto ao segundo, os critérios de cálculo pouco
importam na definição das normas a serem aplicadas. Veja-se que o
legislador poderia perfeitamente ter usado critérios sem nenhuma relação
com o tempo usado para aposentadoria. Basta lembrar que fosse alterado o
tempo de aposentadoria via emenda constitucional, a forma de cálculo do
benefício especial não sofreria alterações, salvo se modificada também a
lei que a prevê.
Por
fim, o benefício especial não se confunde com a aposentadoria. A uma,
porque o servidor perderá completamente o direito a ele ao trocar o
regime de previdência da União por outro. A duas, a aposentadoria será
gozada junto com o benefício especial e a ninguém é dado usufruir duas
aposentadorias pelo mesmo vínculo estatutário. A três, porque
diversamente da aposentadoria e de qualqeur outro benefício
previdenciário, é calculado no momento da migração, ou seja previamente à
aposentadoria, e depois reajustado pelo INPC até ser pago quando o
servidor se aposentar. Além dessa necessidade de cálculo prévio ser
inerente ao equilíbrio da relação sinalagmática, a lei 12618 no art. 3º,
parágrafos quinto e sexto, distingue entre o benefício especial
calculado e o benefício especial pago. Não há, portanto, qualquer
possibilidade de se afirmar existente relação de acessoriedade entre
aposentadoria e o benefício especial que poderia levar à conclusão
errônea de que esse ostenta caráter previdenciário e não civil.
Vê-se,
pois, que as marcantes diferenças entre o benefício especial e os
previdenciários não permitem inclui-lo no rol desses. Se isso for feito,
é necessário destacar a imutabilidade dada pela proteção ao ato
jurídico perfeito. Haveria características previdenciárias, nascidas da
forma de cálculo, mas não a propensão à mudança a que sujeito os
elementos do regime jurídico previdenciário".
A
posição aqui externada foi adotada pela Advocacia-Geral da União que cita
expressamente trecho do artigo de minha autoria sobre o tema. O parecer da AGU,
nos Processo 03154.004642/2018-50, foi aprovado pelo presidente da
República em 27/05/2020 para os fins do disposto no art. 40, §
1º, da Lei Complementar nº 73 (DOU, n. 100, Seção1, p. 118). Reza o dispositivo
que §
1º O parecer aprovado e publicado juntamente com o despacho presidencial vincula
a Administração Federal, cujos órgãos e entidades ficam obrigados a lhe dar
fiel cumprimento.
Em vista da natureza do benefício especial, não incide, quanto a ele, o teto do serviço público federal previsto no art. 37, XI, da CF/88. O art. 40, § 11, da Constituição Federal reza que "aplica-se o limite fixado no art. 37, XI, à
soma total dos proventos de inatividade, inclusive quando decorrentes da
acumulação de cargos ou empregos públicos, bem como de outras atividades
sujeitas a contribuição para o regime geral de previdência social, e ao montante
resultante da adição de proventos de inatividade com remuneração de cargo
acumulável na forma desta Constituição, cargo em comissão declarado em lei de
livre nomeação e exoneração, e de cargo eletivo". O benefício especial não se enquadra na categoria proventos de atividade. Sequer é remuneratório, o que o torna indiferente às restrições do art. 37, XI, da CF que abarca "outra espécie remuneratórias". Isso significa que não se aplica ao benefício especial a tese fixada pelo STF ao analisar o tema de repercussão geral 359. Ei-la:
"Ocorrida a morte do instituidor da pensão em momento posterior ao da
Emenda Constitucional nº 19/1998, o teto constitucional previsto no
inciso XI do artigo 37 da Constituição Federal incide sobre o somatório
de remuneração ou provento e pensão percebida por servidor".
Sem dúvida, a não incidência do teto do RGPS essa é mais uma vantagem do benefício especial em relação aos recebimento de proventos de aposentadoria e pensão. A próxima questão a ser respondida é: incide imposto de renda sobre o benefício especial ante o seu caráter indenizatório. Adianto que a resposta é negativa, mas deixo para abordar o assunto com mais profundidade em outro post.
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