Partidos
e candidatos devem prestar contas à Justiça eleitoral expondo
receitas e gastos da campanha eleitoral. Quem se negar a fazê-lo não
pode obter quitação eleitoral necessária à candidatura. Porém,
para o TSE, quem as apresentar e vê-las rejeitadas, por maiores que
sejam os vícios nelas presentes, terá direito à quitação. Concorda com o
tratamento dado aos "contas-sujas", e-leitor(a)? Não responda ainda.
Em 2011, o TSE ao editar a Resolução 23.376, deixou expresso que a rejeição de contas acarretaria a ausência de quitação eleitoral. No entanto, ao julgar o Pedido de Reconsideração na Instrução Normativa nº 1542-64, o Tribunal, em nova composição, retirou da resolução o impedimento de obtenção de quitação eleitoral por desaprovação de prestação de contas. Seguindo a mesmo trilha, a Resolução 23406/14, regedora da prestação de contas nas Eleições 2014, nada disse sobre os efeitos da rejeição para a quitação
O texto da resolução baseou-se na tese de que a Lei 9.504/97, alterada pela Lei 12.034/09, não exige a aprovação ou aprovação com ressalvas das contas para a quitação eleitoral. Ocorre que a legislação não tem esse restritíssimo alcance que lhe foi dado pela resolução, o qual, é bom que se diga, seguiu norte traçado em julgados do TSE. Vejamos.
No RESPE
153164/MT (DJE de 27/05/2011, Rel. Min. Dias Toffoli) o TSE, por 4x3, afirmou que
“o § 7º do artigo 11 da Lei nº
9.504/1997, com a redação que lhe foi dada pela Lei nº 12.034/2009, inovou,
no que tange à quitação de obrigações eleitorais, ao dispor que a mera apresentação
de contas de campanha eleitoral bastaria para a expedição de certidão de
quitação eleitoral”.
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Acrescentaram os ministros que “a desaprovação ou a não oportuna apreciação
das contas não poderiam acarretar falta de quitação eleitoral, a impedir o
registro de candidatura a novo cargo eletivo”. O mesmo entendimento foi adotado
no RESPE 482632/RS( DJE de 16/12/2010, Rel. Aldir Passarinho) em que se decidiu
que a satisfação do requisito da quitação eleitoral, no que se refere às
prestações de contas de campanha, compreende somente a sua apresentação, sem
necessidade de correspondente aprovação pela Justiça Eleitoral, de acordo com o
disposto no art. 11, §7º, da Lei n° 9.504/97, acrescido pela Lei n°
12.034/2009. Eis o teor do dispositivo:
§7º A certidão
de quitação eleitoral abrangerá exclusivamente a plenitude do gozo dos direitos
políticos, o regular exercício do voto, o atendimento a convocações da Justiça
Eleitoral para auxiliar os trabalhos relativos ao pleito, a inexistência de
multas aplicadas, em caráter definitivo, pela Justiça Eleitoral e não
remitidas, e a apresentação de contas de campanha eleitoral.
A posição
de que rejeição de contas não impediria obtenção de quitação prevaleceu no TSE. Baseia-se no fato
de que a norma citada afirma que a certidão de quitação eleitoral abrangerá
exclusivamente “a apresentação de contas de campanha eleitoral”. Com a devida vênia, há graves falhas nesse
entendimento.
Não podemos
esquecer que o direito, como toda linguagem, é um sistema de elementos
coerentes, que guardam entre si relação de não contradição. É absolutamente
incoerente considerar a que a não apresentação de contas poderia impedir a
quitação e a desaprovação não. É que naquela sequer se comprovou efetivamente
que vício severo ocorreu, o que ocorre nos procedimentos de prestação de contas
findados com decisão de rejeição.
Há mais. Na
rejeição de contas, o candidato ainda pode ser punido com sanções que não
atingirão quem não as prestar no momento e formas adequados, como o recolhimento ao fundo
partidário dos valores oriundos de fontes vedadas. Aquele que teve as contas
declaradas não prestadas e depois as apresenta, terá a situação regularizada
para a próxima legislatura. Nota-se que
há a possibilidade de a rejeição ser sancionada
mais severamente que a não apresentação.
Parece, diante desse quadro,
evidente que a carga valorativa negativa a ser dada à rejeição é maior
que à não apresentação. Por isso, incoerente presumir que o efeito quanto à
obtenção da quitação viria somente para a última. Em verdade, em benefício da
coerência do sistema, o art. 11, §7º da Lei 9.504/97 há de
ser interpretado em conjunto o art. 30 do mesmo estatuto legal, o qual, ao
tratar dos possíveis julgamento das prestação de contas, assevera que “a Justiça
Eleitoral verificará a regularidade das contas de campanha”.
Nesse ponto, precisas as lições do Min. Marco
Aurélio ao tratar do art. 11, §7º, no seu voto
vencido no RESPE 153164/MT, acompanhado pelo Min. Lewandowsky e pela Min.
Nancy Aldrigh. Afirmou ele que a referência à apresentação de contas é feita
não apenas para se atender a um aspecto formal, mas para se perquerir sobre a harmonia ou não dessas contas com o
ordenamento jurídico. E arremata:
É possível afirmar, potencializando-se apenas o aspecto formal
em detrimento do fundo, ser suficiente dirigir-se ao protocolo da Justiça
Eleitoral e apresentar contas, pouco importando a boa ou a má procedência
delas? A finalidade da norma não é essa, a
menos que também se assente que, apresentadas as contas, haja o exaurimento
do dever do candidato, sem a necessidade sequer do pronunciamento da Justiça
Eleitoral sobre a regularidade (…) Senhor Presidente, não consigo emprestar ao § 7º do artigo 11 da
Lei n° 9.50411997 sentido limitativo quanto aos elementos conducentes a
obter-se a certidão de quitação eleitoral. A rejeição das contas está
compreendida no preceito como fator determinante para não se alcançar a
certidão de quitação. A referência a esta, contida no início do preceito,
norteia o alcance da parte final, da expressão "apresentação de contas".
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Há uma falha na argumentação de que de acordo com o
art. 11, a quitação eleitoral abrangia exclusivamente a apresentação de contas.
Vamos ao artigo:
§ 7o A certidão de quitação eleitoral abrangerá
exclusivamente a plenitude do gozo dos direitos políticos, o regular exercício
do voto, o atendimento a convocações da Justiça Eleitoral para auxiliar os
trabalhos relativos ao pleito, a inexistência de multas aplicadas, em caráter
definitivo, pela Justiça Eleitoral e não remitidas, e a apresentação de contas
de campanha eleitoral
O sujeito da oração presente na
norma não é a quitação eleitoral, mas a CERTIDÃO DE QUITAÇÃO. É evidente que
essa tratará somente de aspectos que gerarão a elegibilidade, afinal ela serve para prová-los. Mas isso não significa que na análise da quitação não podem ser
levados em conta elementos que afastam a elegibilidade. Aplicado o mesmo
raciocínio usado para fundamentar a exigência exclusiva de apresentação de
contas, diríamos que na quitação não poderiam ser examinadas a suspensão de
direitos políticos, o descumprimento do dever de votar e das convocações da
Justiça Eleitoral e a existência de multas. Isso porque, nos termos do
parágrafo sétimo, somente a plenitude do gozo dos direitos políticos, o regular
exercício do voto e o atendimento às convocações podem ser consideradas para
EMISSÃO DA CERTIDÃO DE QUITAÇÃO.
A equiparação entre as consequências
da rejeição e da não apresentação não constitui novidade nenhuma. Em primeiro
lugar, estava prevista na resolução 22715/2008. Em segundo, está consagrada,
quanto aos Partidos Políticos, no art. 25 da Lei 9.504/97, de acordo com o qual
“o partido que descumprir as normas referentes à arrecadação e aplicação de
recursos fixadas nesta Lei perderá o direito ao recebimento da quota do Fundo
Partidário do ano seguinte, sem prejuízo de responderem os candidatos
beneficiados por abuso do poder econômico”.
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Dar à
rejeição de contas do candidato o mesmo efeito da não apresentação é medida já
prevista em lei, considerada a coerência do ordenamento. Alias, fazer o
contrário configura clara ofensa à isonomia prevista no art. 5º,
"caput" e II, da CF/88: qual o descrímen que justifica o tratamento
privilegiado a quem teve as contas rejeitadas em relação a quem não as
apresentou? Nenhum. Em ambas as hipóteses ou será impossível fiscalizar os
gastos e a arrecadação dos candidatos ou estará provada a utilização de fontes
vedadas. Tem mais: como justificar que aquele que tiveram as contas aprovadas
merecem o mesmo tratamento dos que as tiveram rejeitadas? A agressão à isonomia
abre a porta para o manejo do Recurso Extraordinário contra os acórdãos
do TSE.
Nem se diga que a ofensa à constituição é meramente reflexa nesse caso. Os
precedentes mais recentes da corte constitucional apontam para outro rumo. No
RE 627432 RG / RS - REPERCUSSÃO GERAL, discute-se a
constitucionalidade dos arts. 55 E 59 DA MP 2.228-1, os quais estipularam
a denominada cota tela, consistente na obrigatoriedade de exibição de filmes
nacionais nos cinemas brasileiros por determinados períodos. Alegou o
recorrente, o Sindicado das Empresas Exibidores Cinematográficas do Estado do
Rio Grande do Sul, "ser necessário analisar o feito à luz do princípio da
isonomia, haja vista que não há qualquer determinação similar relativamente a
outras empresas do setor cultural, tais como livrarias, emissoras de rádio ou
televisão no tocante à exibição e à exposição de material nacional".
Ao reconhecer a repercussão geral, o STF pontuou que:
De fato, é de índole eminentemente constitucional a matéria
suscitada no recurso extraordinário. Cumpre, pois, avaliar, no caso dos
autos, quão efetivamente se aplica o princípio da isonomia, com a consequente
análise da justificativa para o tratamento diferenciado dispensado às
empresas exibidoras de filmes cinematográficos"(RE 627432 RG / RS -
REPERCUSSÃO GERAL, Rel. Min. DIAS TOFFOLI. DJe 56, de
21/03/2014)
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Em verdade, a pouca precisão do conceito de "ofensa reflexa" é
somente mais um mecanismo à disposição do STF para escolher quais casos julgar. A
porta do Supremo, se aberta estava para discussão sobre isonomia entre empresas de cinema
e outras do setor cultural quanto à aplicação da cota tela, há de estar
escancarada para se discutir o tratamento dispensado aos políticos que têm as
contas aprovadas, rejeitadas e os que não as apresentaram.
Recordemos que nos termos do art. 17, III, a "prestação de contas à Justiça Eleitoral" é princípio regedor dos partidos políticos. Se não existe candidatura avulsa no país, tal princípio aplica-se também aos candidatos. Por óbvio, a legislação ordinária sobre prestação de contas há de ser interpretada segundo essa norma constitucional, salvo se quisermos ignorar os princípios hermenêuticos da força normativa e da máxima efetividade.
Olhemos a questão sob o ângulo do eleitor. Estamos a tratar de direitos fundamentais de segunda e terceira geração
consagrados respectivamente nos arts 5º, XXXV e
art. 14, §9º, da CF. Esse, ao prever que a probidade administrativa, a
moralidade, a normalidade e legitimidade das eleições poderão fundamentar a
criação de inelegibilidades as eleva à condição de direito fundamental do
eleitorado. Aquele, ao dispor que lei não excluirá da apreciação do Poder
Judiciário lesão ou ameaça a direito impede que o procedimento jurisdicional
seja elevado à categoria da mais absoluta inutilidade. Lembremos que a
prestação de conta é procedimento jurisdicional. Não basta a cumprir o
mandamento constitucional que prevê o acesso a jurisdição a outorga a sociedade
de qualquer acesso ao Judiciário, mas somente o que possa trazer resultados
efetivos a quem dele precisa. Considerar que a rejeição de contas não impede a
quitação equivale a criar decisão judicial com eficácia zero. Qual a eficácia para candidato que deixar de trazer documentos essenciais, como
extratos bancários, da decisão que julgar desaprovadas as suas contas? Apenas haverá efeitos para os que tiverem que recolher aos cofres públicos
determinados valores, o que só se dá em hipóteses muito específicas. Ah, como pude esquecer? Teremos também o muito efetivo "puxão de orelha": "candidato feio, da próxima vez não faça mais isso!"
Importante ter em vista que um
esforço imenso é despendido na prestação de contas. Conforme o art. 30, § 3º,
da Lei 9.504/97, para efetuar o exame da contas a Justiça Eleitoral poderá
inclusive requisitar técnicos do Tribunal de Contas da União, dos Estados, do
Distrito Federal ou dos Municípios, pelo tempo que for necessário. Considerar
que a rejeição de contas é inútil é desprezar todos os gastos feitos pelo
Estado Brasileiro. Além da participação intensa da Justiça Eleitoral e do
Ministério Público Eleitoral, a Prestação de Contas envolve atuação de órgãos
de outros poderes.
Não merece amparo o argumento de
que a prestação de contas não precisaria gerar consequências porque os abusos
poderiam ser apurados pelo Ministério Público. A uma, porque o prazo para o MP
fazê-lo é absolutamente exíguo. Quinze dias depois da posse não há mais ação eleitoral que possa ser manejada pelo
MP. Ademais, somente as contas dos eleitos devem ser julgadas até a data da
diplomação. Parece evidente que na
maioria das vezes as contas são analisadas quando o Ministério Público não pode
mais utilizar as ações eleitorais ou quando o tempo hábil para instruí-la
devidamente é mínimo.
Por escolher interpretação que inutiliza
a prestação de contas, deixando desamparados os direitos à moralidade e
normalidade das eleições, bem como esvaziando o exercício da jurisdição, o TSE,
atuando como legislador, acabou por incidir na proibição da proteção
deficiente. Inconstitucional a redução
arbitrária do grau de concretização legislativa de um direito fundamental.
Não
por outra razão a Procuradoria-Geral da República, em 15/01/2013, ofereceu a
ADI 4899, pleiteando que o STF conferisse interpretação conforme à CF ao §7º da Lei 9.504/97, nos seguintes termos: “para que a
expressão apresentação das contas que integra o conceito de quitação eleitoral
presente no referido dispositivo legal, seja entendida em seu sentido
substancial, em consonância com a ordem constitucional, e não apenas literal,
devendo a certidão de quitação eleitoral abranger a apresentação regular das
contas de campanha”.
Na
inicial da ADI, sustentou-se que a restrição à obtenção da quitação eleitoral
com fundamento na rejeição das contas busca resguardar os princípios
constitucionais da moralidade, da probidade e da transparência. Destacou o MPF
que o art. 17, III da Carta da República, ao determinar que os partidos
políticos deverão obedecer, dentre outros preceitos, a prestação de contas,
demonstra que o dever de prestá-las é inerente à vida política das agremiações
e dos candidatos. Acrescentou-se que parte considerável dos gastos de campanhas
envolve a movimentação de recursos públicos, advindos do Fundo Partidário.
Apenas em 2011, tal fundo distribuiu R$ 307.317.749,00, segundo informações
disponibilizadas pelo TSE. Como o art. 70 da CF obriga qualquer pessoa que use
recursos públicos a prestar contas, impossível considerar constitucional
interpretação atualmente dada pelo TSE ao artigo citado da Lei 9.504/97 por
tornar inútil a prestação de contas de campanha.
O relator, Min. Luiz Fux, aplicou o art. 12 da lei 9868/99 e não apreciou monocraticamente o pleito liminar. Após a manifestação da AGU em defesa do ato normativo, a PGR, em 09/09/2013, defendeu,
novamente, a procedência do pedido. Os autos estão conclusos ao relator desde
13/09/13.
Fracassados os instrumentos de de controle de constitucionalidade, continuaremos com prestações de contas que não prestam para nada, com o perdão do trocadilho fácil. Quem paga a conta? Lembra-se do espelho no título, caríssimo(a) e-leitor(a)? Pensou que não servia para nada?