domingo, 25 de dezembro de 2011

Ficha Limpa e presunção de inocência: réquiem ou frevo?


 Finalizo hoje, e-leitor, a série de posts sobre a Lei Ficha Limpa. Estou devendo a análise do confronto entre o princípio da presunção da inocência e  as disposições da LC 135/2010 que permitem que decisões de órgãos colegiados não transitadas em julgado gerem inelegibilidades. Vamos a ela. 
 
O art. 5º, LVII, da CF/88 determina que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Esse dispositivo impede que inelegibilidades nasçam de condenações recorríveis? A reposta dependerá da análise das diferenças entre as duas espécies de normas constitucionais: os princípios e as regras. As distinções que nos importam no momento referem-se a: 1) o alcance de sua aplicação; 2) como são sanados os conflitos que as envolvem.

Comecemos pelo item “1”. As regras têm um grau de concretude maior que os princípios. Sabe-se, de antemão, exatamente em que situação aplicá-las. É o caso, por exemplo, da norma constitucional que afirma que o voto é facultativo para os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos. Examinemos agora o dispositivo constante no art. 5°, caput, da CF/88, segundo o qual “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. Estamos diante do princípio da igualdade, aplicável a uma infinidade de casos, da vedação de discriminação por raça à permissão para casamento entre pessoas de mesmo sexo.

Passemos a outra distinção entre regras e princípios. Esses, quando se opõem, podem conviver. As regras, não. Se uma regra diz que “você pode fazer X” e outra que “você não pode fazer X” fatalmente uma não será válida. Sigamos usando como exemplo as regras que tratam da idade do eleitor. Impossível considerar válidas duas regras que digam “o eleitor só poderá votar aos 18 anos” e o “eleitor poderá votar aos 16 anos”. Uma delas será afastada do sistema jurídico, o qual, por definição, tem como componentes normas que guardam entre si relação de coerência ou de não contradição.

Solução diversa será dada para o conflito entre princípios. Para o professor americano Ronald Dworkin(Levando os Direitos a Sério, Ed. Martins Fontes, 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007)  os princípios são exigências de justiça, equidade ou de outra dimensão da moral social. Haverá situações em que serão postos em confronto. Nelas o intérprete decidirá qual princípio prevalecerá, sem, no entanto, anular o outro. Imaginemos o caso de um hospital, no qual funciona uma UTI movimentadíssima, que está sem pagar contas de energia há meses. Fosse ele um consumidor individual pessoa física, a concessionária de energia elétrica poderia cortar sua luz. No entanto, se isso for feito, dezenas de pessoas que dependem dos funcionamento dos aparelhos da UTI morrerão. O que fazer nesse caso em que entram em conflito o direito de propriedade da empresa prestadora de serviço e o direito à vida dos clientes do hospital? Prevalecerá o direito à vida. A empresa não poderá realizar o corte. Porém, poderá cobrar o hospital pelas vias judiciais convencionais. Vejam que embora o direito à vida tenha sido preservado, não se anulou o direito à propriedade. Segundo Robert Alexy, o caso há de ser resolvido de acordo com a técnica de ponderação de princípios, citada reiteradamente pelos tribunais brasileiros. Utilizando-se de critérios de razoabilidade demonstrados por meio de argumentação racional e clara, o intérprete adotará posição beneficiando um princípio em detrimento do outro. 

Os Ministros Joaquim Barbosa e Luiz Fux, os únicos que já se manifestaram nas ADC 29, ADC 30 e ADI 4578 que discutem a constitucionalidade da LC 135, defenderam que a presunção de inocência é regra cuja aplicação é adstrita ao direito penal. Como inelegibilidade não é pena, seria descabido falar que presunção de inocência impediria seu surgimento a partir de decisões não transitadas em julgado. Lembremos, e-leitor: regra é norma de concretude acentuada, voltada a regular uma situação específica. Considerada regra, a presunção de inocência de fato não poderia irradiar efeitos para o processo eleitoral, razão pela qual o raciocínio dos ministros estaria correto. A crítica que se faz aos ministros é que eles partiram de premissa errada: a presunção de inocência não é regra. Ao julgar a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental(ADPF) n. 144, o STF sustentou que a presunção de inocência é princípio apto a irradiar efeitos no direito eleitoral. Adotada essa posição, seria inconstitucional a previsão da LC 135/2010 de inelegibilidade em decorrência de decisão recorrível de órgão colegiado? Não, não seria. Explico.

Definida como princípio, a presunção de inocência poderá ser ponderada com outros princípios constitucionais para que se verifique se há possibilidade de se agregar às condenações de órgãos colegiados não definitivas o efeito da inelegibilidade. O art. 14, § 9º, da CF determina que “Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta”. O dispositivo eleva, expressamente, a moralidade e a probidade administrativa ao posto de princípios regedores da representação eleitoral. Na ponderação entre eles e a presunção de inocência, essa não se prestará a anulá-los, nem aqueles, a essa. Veremos a seguir  que a ponderação  feita pela legislador consubstanciada na LC 135 chegou a esse equilíbrio. 

Para a LC 135/2010, o que gerará inelegibilidade não é o simples inquérito (instrumento usado pela polícia para investigar desprovido de efeito processual), a ação penal oferecida pelo Ministério Público ou a condenação do juiz de primeira instância. Não, e-leitor, não se repetiu o erro constante na antiga LC 05/70 que, regulamentando o art. 151 da ditatorial CF/69, previa que a instauração de processos, por si só, era suficiente a subtrair a capacidade eleitoral passiva. O ato gerador da inelegibilidade é a decisão de órgão colegiado, ou seja, de tribunais, cujas decisões são atacáveis, via de regra, por recursos que não geram reexame de matéria fática nem possuem efeito suspensivo, como o Recurso Especial e o Extraordinário. Não se anulou, portanto, o princípio da presunção de inocência, já que se exigiu condenação de tribunal para criar inelegibilidade.  Quando tribunais se manifestam, salvo nos casos de prerrogativa de função, pressupões-se que o réu exerceu o contraditório  na primeira instância e no próprio órgão colegiado. O poder no Estado Democrático se legitima pela efetiva participação daqueles que sofrerão seus efeitos na sua conformação. O condenado já terá exercido suficientemente o contraditório para dizer ilegítima a mitigação da presunção de inocência. Situação diferente teríamos se os paradigmas da LC 05/70 tivessem sido repetidos pela lei da ficha limpa.


Opa, um minuto aí. O STF, em 2009, no HC 84078(Rel. Min. Eros Grau), mudando posição consolidada há duas décadas, não conferiu efeito suspensivo ao Recurso Extraordinário e Especial proibindo qualquer restrição à direito do réu antes do trânsito em julgado da condenação? Não. O STF apenas decidiu que “a prisão antes do trânsito em julgado da condenação somente pode ser decretada a título cautelar”, vedando assim a execução provisória (sem condenação definitiva) da pena privativa de liberdade. Como inelegibilidade não é pena, conforme demonstrado no post Inelegibilidade não é pena”, não há confronto entre o julgamento no HC 84708 e a possibilidade de condenação de colegiado tornar indivíduos inelegíveis.

Voltemos à ADPF 144. Nela não se discutiu se era constitucional a inelegibilidade oriunda de condenações de órgãos colegiados. Foram duas as questões postas. Uma, se mesmo sem previsão em lei a vida pregressa do candidato poderia ser levada em conta para aferir sua elegibilidade em virtude do que dispunha o art. 14, § 9º, da CF/88. Outra, se a exigência de coisa julgada nas condenações geradoras de inelegibilidade referidas nas alíneas “d”, “e” e “ do art. 1°, I da LC 64/90 não transgrediria os princípios fundamentais concernentes à probidade e à moralidade administrativa para o exercício do mandato. A resposta do STF para ambas foi negativa. Vejamos as conclusões do voto vencedor do Min. Celso de Mello:

(1) a regra inscrita no § 9o do art. 14 da Constituição, na redação dada pela Emenda Constitucional de Revisão no 4/94, não é auto-aplicável, pois a definição de novos casos de inelegibilidade e a estipulação dos prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa e a moralidade para o exercício do mandato, considerada a vida pregressa do candidato, dependem, exclusivamente, da edição de lei complementar, cuja ausência não pode ser suprida mediante interpretação judicial;
(2) a mera existência de inquéritos policiais em curso ou de processos judiciais em andamento ou de sentença penal condenatória ainda não transitada em julgado, além de não configurar, só por si, hipótese de inelegibilidade, também não impede o registro de candidatura de qualquer cidadão;
(3) a exigência de coisa julgada a que se referem as alíneas d”, “ee hdo inciso I do art. 1o e o 96ADPF 144 / DF art. 15, todos da Lei Complementar no 64/90, não transgride nem descumpre os preceitos fundamentais concernentes à probidade administrativa e à moralidade para o exercício de mandato eletivo;
(4) a ressalva a que alude a alínea g” do inciso I do art. 1o da Lei Complementar no 64/90, mostra-se compatível com o § 9o do art. 14 da Constituição, na redação dada pela Emenda Constitucional de Revisão no 4/94.


  Celso de Mello na sua argumentação citou concepção do Min. Cezar Peluso sobre a presunção de inocência. Ei-la:

O que, portanto, significa o enunciado de que ninguém será considerado culpado até o trânsito julgado da sentença condenatória? Significa uma garantia. Garantia contra o quê? Contra a aplicação de qualquer sanção, entendida como qualquer restrição a qualquer direito do réu, até que advenha uma sentença penal condenatória que transite em julgado”

Com a devida vênia, a definição de presunção de inocência de Peluso é equivocada, não só por confundir pena com sanção (tema examinado em Inelegibilidade não é pena”) mas também por tratar a presunção de inocência como regra. Não é. É princípio. Se regra fosse, não se aplicaria, como  afirmado por Celso de Melo em seu voto, além das fronteiras do direito penal. E mesmo esse prevê inúmeras restrições a direito anteriores ao trânsito em julgado. Adotada a posição de Peluso, teríamos, por exemplo, que proibir as prisões preventiva, em flagrante e temporária. Precisaríamos ainda impedir o sequestro de bens e qualquer mitigação de sigilo telefônico e bancário, “já que o réu não pode ser tratado como criminoso sem o trânsito em julgado”. Todas essas medidas, então, seriam inconstitucionais? Evidente que não.

O que a presunção da inocência proíbe não é qualquer restrição à direito do réu, mas a que só poderia nascer com o trânsito em julgado da decisão. É vedada, por exemplo, a expropriação de bens no curso do processo, mas não a decretação de sua indisponibilidade. Da mesma maneira, proíbe-se a perda do cargo antes da decisão definitiva, mas não o afastamento dele.

Ressalte-se que considerar que a presunção de inocência não permitiria a imposição de inelegibilidades sem o trânsito em julgado de condenações ofende dois princípios hermenêuticos: o da máxima efetividade, por tornar absolutamente ineficaz o art. 14, § 9º, em relação às condenações criminais ; e o da unidade, por ignorar a existência do art. 15, III da CF/88, e por conseqüência, esquecer que Constituição há de ser interpretada como um corpo único.

A CF/88, desde o seu nascimento, prevê a perda ou suspensão dos direitos políticos com o trânsito em julgado de decisões condenatórias penais. Segundo o art. 15, III, é vedada a cassação de direitos políticos, cuja perda ou suspensão só se dará nos casos de “condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos”. Por óbvio, se direitos políticos são suspensos, elegibilidade não haverá, já que essa é parte daqueles. Ora, se o constituinte originário já previa inelegibilidades geradas por decisões irrecorríveis, qual seria a eficácia do parágrafo nono do art. 14 - criado pela Emenda Constitucional de Revisão n. 4 de 1994 – no âmbito penal caso se entenda que a inelegibilidade só pode ser imposta por condenação transitada em julgado? Nenhuma.  Logo,  o direito penal, a ultima ratio, arma mais forte do estado contra qualquer ilícito, deixaria de servir como instrumento da moralização prevista no art. 14, parágrafo nono,  da CF. 

Uma das maneiras de se verificar a viabilidade de determinada interpretação é confrontá-la com seus resultados. Adotada a tese de que condenações judiciais não definitivas não produzem inelegibilidades, qual o destino a ser dado às decisões de órgãos não jurisdicionais, como conselhos profissionais e tribunais de contas? Se no Judiciário, instância em que se presume que o réu terá as maiores proteções legais, o trânsito em julgado é pressuposto da inelegibilidade, como defender inelegibilidades originadas de procedimentos em que a proteção ao acusado é infinitamente inferior às conferidas no processo judicial? Lembremos, mais uma vez, que o ordenamento jurídico, como todo sistema, constitui um conjunto de elementos que não se contradizem. É contraditório impedir que decisões judiciais de órgãos colegiados tornem candidatos inelegíveis e, ao mesmo tempo, permitir que manifestações proferidas em meros procedimentos administrativos, como a rejeição de contas, o façam. 

Definido que decisões de órgãos colegiados podem criar inelegibilidade, a dúvida que se põe é: qual a duração dela? A  redação da LC 135/2010, nesse ponto, é falha. Reza a lei, em relação às condenações criminais e por improbidade administrativa, que o condenado será inelegível "desde o momento da decisão do colegiado até o transcurso do prazo de oito anos após o cumprimento da pena". Como não há prazo para o término do processo, o réu poderá ficar inelegível indefinidamente entre a data da condenação e o trânsito em julgado. Impõe-se, assim, tratamento mais gravoso à parte que fizer uso do legítimo direito de recorrer. Há clara ofensa à isonomia, já  que os que não recorrerem ficarão inelegíveis por um período menor do que os que o fizerem. Evidentemente o exercício do direito de recorrer não constitui fator de discriminação apto a justificar tal diferença de tratamento. Para evitar violação ao princípio da igualdade, o marco inicial da contagem dos oito anos deve ser a data do início da inelegibilidade: o momento da condenação pelo colegiado.

Na hipótese de o STF decidir que a presunção de inocência torna inconstitucional inelegibilidades derivadas de condenações não definitivas, nenhuma decisão administrativa ou judicial não transitada em julgado poderá gerá-las. Esqueçamos a inelegibilidade oriunda das rejeições de contas, das demissões de servidores públicos por procedimentos administrativos e da exclusão do exercício da profissão por infrações ética-profissionais. A aparentemente inocente - e popular - defesa deturpada da presunção de inocência pode selar de vez o destino Lei da Ficha Limpa. Só nos restará abandonar as ilusões e dar, de uma vez por todas, a extrema unção ao objetivo moralizante previsto pelo art. 14, §9º, da CF e concretizado pela LC 135/2010.  Morta a Lei Ficha Limpa, o eleitorado ouvirá o réquiem.  Os marginais travestidos de candidatos, o frevo. 

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