quarta-feira, 30 de novembro de 2022

Incide o teto constitucional do Art. 37, XI quanto ao Benefício Especial?

 

 

A questão tem atormentado os servidores a administração pública. Deve-se respondê-la analisando a natureza jurídica do BE. Tendo esse em vista, a resposta há de ser negativa, afinal, a natureza do Benefício Especial é incompatível com a limitação ao teto constitucional, como se verá.  

Começo destacando que a discussão jurídica é sempre limitada pelo texto jurídico. É ele e somente ele quem definirá qual a natureza jurídica do benefício especial e as normas que lhe serão aplicáveis. Não se define primeiro a natureza para depois saber qual regra jurídica se aplicará ao benefício. O caminho a ser feito é o inverso. No momento inicial, verifica-se como o ordenamento trata o benefício especial. Posteriormente, define-se a classificação, ou a natureza jurídica, que receberá. Consideremos, para defini-la, a coerência do sistema jurídico - para usar a linguagem de Neil MacCormick e Norberto Bobbio -  ou a característica que o sistema ostenta de ter elementos que guardem entre si relação de não contradição ou compatibilidade. Ver-se-á que tendo o ordenamento como norte, é difícil qualificar o benefício especial como remuneração limitada ao teto do art. 37, XI. 


O direito ao benefício especial nasce como eficácia da manifestação expressa  e irrevogável de vontade do servidor público, geradora de eficácia dúplice: a) uma imediata, consistente na migração de regime e consequente submissão ao teto do RGPS e diminuição da base de cálculo de contribuição previdenciária; b)  outra protraída, que corresponde ao recebimento do benefício especial caso o servidor se aposente pelo regime de previdência da União.  Feita a opção, calcula-se o benefício especial, como determina o art. 3º da Lei 12618/12. Desse momento em diante, o benefício especial passa a ser reajustado pelo INPC e percebido no momento da aposentadoria.O art. 3o , § 8o  da Lei 12681/16, que define o benefício especial, assevera que "o exercício da opção a que se refere o inciso II do caput é irrevogável e irretratável, não sendo devida pela União e suas autarquias e fundações públicas qualquer contrapartida referente ao valor dos descontos já efetuados sobre a base de contribuição acima do limite previsto no caput deste artigo". Ora se nada será pago como contrapartida relativa ao valor dos descontos sobre base superior ao teto do RGPS, evidente que o benefício especial não nasce desse ato. E se não nasce de contribuições previdenciárias, obviamente não há de ser considerado benefício previdenciário. 
 
Dois pontos reforçam a tese: a) o servidor perderá o direito ao benefício especial caso deixe o regime da União; b)  os benefícios do regime próprio de previdência social são, conforme o art. 5º  da Lei 9.717/98, os mesmos do RGPS. Nesse, não há nada semelhante ao benefício especial.


Ainda no que toca à manifestação de vontade, o art. 2º, parágrafo único da Lei 8666/91, aplicável analogicamente à hipótese, determina que considera-se contrato todo e qualquer ajuste entre administração pública e particulares, em que haja um acordo de vontades para a formação de vínculo e a estipulação de obrigações recíprocas, seja qual for a denominação utilizada. No caso em pauta, há contrato de adesão e uma relação sinalagmática entre servidor e a União.  De um lado, o servidor terá como vantagem o recebimento do benefício especial e a redução da contribuição. A União, de seu turno, terá como vantagem o fato de não precisar pagar a contribuição de 22% sobre o subsídio do servidor, que lhe são exigidos hoje(art. 8o da Lei 10887/04). Em vez disso, pagará somente 22% sobre o teto do RGPS. 

Ademais, a União alega não ter lastro financeiro para pagar esses 22%, o que a obriga a, para honrá-los,  emitir títulos da dívida pública federal, remunerados de uma de três maneiras: a) por Selic; b) por um combinação de IPCA e taxa pré-contratada; c) por uma taxa pré-fixada. O benefício especial é reajustado pelo INPC e só será pago se o servidor se aposentar pelo regime da União. Logo, a União troca uma dívida presente, certa e reajustada por Selic - os 22% que deveria pagar -  por outra futura, incerta e reajustada pelo INPC(o benefício especial), índice muito menor que os usados para remunerar os que emprestam dinheiro à União. A incerteza do pagamento nasce das possibilidades do servidor não se aposentar na União, exonerar-se, ou falecer sem deixar herdeiros necessários. Em qualquer dessas circunstâncias, não será necessário à União pagar o benefício especial.


Com a opção do servidor pela migração, nasce ato jurídico perfeito  - conceito agora expressamente aplicado ao BE pela Lei 14463/2022 - cuja eficácia é dúplice: a) a submissão ao teto do RGPS ; b) o direito ao benefício especial, cujo gozo depende  da  aposentadoria. Temos aqui o conceito firmado no art. 6º , § 1º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, segundo o qual  reputa-se ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou. Modificar o benefício especial, após a manifestação do servidor pela migração – a qual é irrevogável e irretratável, segundo o art. 3º da Lei 12618/12 – é ignorar a proteção conferida ao ato jurídico perfeito pelo art. 5º, XXXVI da CF e chancelar desrespeito à boa-fé objetiva. Afinal, permitir-se-ia ao Estado tirar proveito da migração – já que seus custos serão reduzidos – e não dar cumprimento à oferta que motivou o servidor a migrar.  

 Importante lembrar que o STF, na Súmula Vinculante 1, decidiu que  “ofende a garantia constitucional do ato jurídico perfeito a decisão que, sem ponderar as circunstâncias do caso concreto, desconsidera a validez e a eficácia de acordo constante de termo de adesão instituído pela Lei Complementar nº 110/2001”. Nesse acordo, o trabalhador aceitava determinada complementação de correção monetária nas contas vinculadas. Alguns, porém, tentaram ainda discuti-la em juízo. Para o STF, o acordo, concretizado por meio de adesão, impedia a discussão em virtude da proteção conferida pelo ato jurídico perfeito. Ora, se à adesão ao acordo do FGTS reconheceu-se a eficácia própria do ato jurídico perfeito, a mesma postura se espera do STF em relação à adesão à migração com recebimento de benefício especial. A imutabilidade do benefício especial parece afastar-lhe ainda mais da natureza de mero elemento de regime jurídico previdenciário.

 Acrescente-se que a migração não leva o servidor, ao contrário do que usualmente se diz, a regime de previdência novo. O regime é exatamente o mesmo – o RPPS - mas com a limitação do valor do benefício previdenciário ao teto do RGPS. Se não se cria regime previdenciário novo, seria possível considerar que haveria novo benefício previdenciário, o benefício especial? Parece mais respeitoso à coerência do ordenamento considerar que o benefício especial de previdenciário pouco tem.

Os que defendem tese oposta poderiam dizer que o benefício especial é previdenciário porque só é usufruído na aposentadoria e é calculado segundo o tempo de contribuição. Quanto ao primeiro ponto, essencial lembrar que embora o gozo se dê na aposentadoria, a aquisição do direito ocorre na migração. Já quanto ao segundo, os critérios de cálculo pouco importam na definição das normas a serem aplicadas. Veja-se que o legislador poderia perfeitamente ter usado critérios sem nenhuma relação com o tempo usado para aposentadoria. Basta lembrar que fosse alterado o tempo de aposentadoria via emenda constitucional, a forma de cálculo do benefício especial não sofreria alterações, salvo se modificada também a lei que a prevê. Até o dia 30 de novembro de 2022, por força da MP 1119/22 convertida na Lei 14463/2022, os critérios de cálculo do BE repetem parâmetros da EC 41, e não da EC 103, que a revogou.
 
Por fim, o benefício especial não se confunde com a aposentadoria. A uma, porque nasce de contrato entre servidor e União. A duas,  o servidor perderá completamente o direito a ele ao trocar o regime de previdência da União por outro. A três,  a aposentadoria será gozada junto com o benefício especial e a ninguém é dado usufruir duas aposentadorias pelo mesmo vínculo estatutário. A quatro, porque não há nada semelhante ao Benefício Especial no RGPS, e, por força da Lei, só se pode pagar aos usuários do RPPS benefício pago aos do RGPS, consoante a Lei 9717/98 e 10887/04. A quatro porque,  diversamente da aposentadoria e de qualquer outro benefício previdenciário, é calculado, ao menos para parte da doutrina, no momento da migração, ou seja previamente à aposentadoria, e depois reajustado pelo INPC até ser pago quando o servidor se aposentar. Além dessa necessidade de cálculo prévio ser inerente ao equilíbrio da relação sinalagmática, a lei 12618/12  no art. 3º, parágrafos quinto e sexto, distingue entre o benefício especial calculado e o benefício especial pago. Não há, portanto, qualquer possibilidade de se afirmar existente relação de acessoriedade entre aposentadoria e o benefício especial que poderia levar à conclusão errônea de que esse ostenta caráter previdenciário e não civil.

 Vê-se, pois, que as marcantes diferenças entre o benefício especial e os previdenciários não permitem inclui-lo no rol desses. Se isso for feito, é necessário destacar a imutabilidade dada pela proteção ao ato jurídico perfeito. Haveria características previdenciárias, nascidas da forma de cálculo, mas não a propensão à mudança a que sujeito os elementos do regime jurídico previdenciário".  
 
 

A posição aqui externada foi adotada pela Advocacia-Geral da União que cita expressamente trecho do artigo de minha autoria sobre o tema. O parecer da AGU, nos Processo 03154.004642/2018-50, foi aprovado pelo presidente da República em 27/05/2020 para os fins  do disposto no art. 40, § 1º, da Lei Complementar nº 73 (DOU, n. 100, Seção1, p. 118). Reza o dispositivo que "o parecer aprovado e publicado juntamente com o despacho presidencial vincula a Administração Federal, cujos órgãos e entidades ficam obrigados a lhe dar fiel cumprimento".

 

Como se vê, a natureza do benefício especial é de indenização (ou compensão, nos termos da do parecer da AGU) civil, nascida de contrato firmado entre servidor e União. O art. 40, § 11, da Constituição Federal reza que "aplica-se o limite fixado no art. 37, XI, à soma total dos proventos de inatividade, inclusive quando decorrentes da acumulação de cargos ou empregos públicos, bem como de outras atividades sujeitas a contribuição para o regime geral de previdência social, e ao montante resultante da adição de proventos de inatividade com remuneração de cargo acumulável na forma desta Constituição, cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração, e de cargo eletivo". O benefício especial não se enquadra na categoria proventos de atividade. Sequer é remuneratório, o que o torna indiferente às restrições do art. 37, XI, da CF que abarca "outra espécie remuneratórias".  Sobre ele não incide contribuição previdenciária, o que o afastaria da categoria "proventos de outras atividades sujeita a contribuição" Isso significa que não se aplica ao benefício especial a tese fixada pelo STF ao analisar  o tema de repercussão geral 359. Ei-la: 


"Ocorrida a morte do instituidor da pensão em momento posterior ao da Emenda Constitucional nº 19/1998, o teto constitucional previsto no inciso XI do artigo 37 da Constituição Federal incide sobre o somatório de remuneração ou provento e pensão percebida por servidor".

Possibilitar que se pague o Benefício Especial em valor diverso do contratado com a União, sob o argumento de que se estaria respeitando o teto do art. 37, XI, seria ofender frontalmente a garantia do ato jurídico perfeito. O princípio pacta sunt servanda também se aplica contra o Estado , o qual há de se comportar com boa-fé diante do administrado, como decorrência do princípio da moralidade no art. 37, caput da Carta de 88. Considera-se a boa-fé um elemento dessa última derivado. Inserir a marteladas o conceito de benefício especial no espectro coberto pelo art. 37, XI  para permitir não é, com a devida vênia, solução jurídica razoável. O art.37, XI  não é instrumento apto a livrar a União do cumprimento de suas obrigações contratuais.
 
A conclusão acima exposta é contrária ao parecer da Secretaria de Fiscalização de Integridade de Atos e Pagamentos do Pessoal e de Benefícios Sociais do TCU, nos autos da Representação 036.627/2019-4. Com a devida vênia, ao nominar o benefício especial de benefício previdenciário sui generis para justificar a incidência do teto, a Secretaria acaba se desviando da legislação pertinente, como acima demonstrado  num momento crucial para os servidores públicos. Contraditoriamente, a mesma SEFIPE afirma não incidir o teto quanto ao pagamento dos pensionistas. Chegar-se-á ao inusitado da viúva receber valores maiores que o aposentado em vida, já que seu BE,  não sofre os cortes dos postos na EC 103 para o cálculo da pensão e será sempre recebido integralmente.  
 
 Por fim, os defensores da tese aposta poderiam afirmar que o BE constitui-se em vantagem pessoal referida no art. 37, XI, que estabelece o teto constitucional. Tal entendimento está equivocado. O conceito de vantagem pessoal relaciona-se a retribuição rotineira percebida pelo titular de um cargo em razão do exercício do seu cargo atual ou de cargo diverso, não a negócio jurídico com caráter sinalagmático. Imaginar o contrário seria pensar que servidores que recebessem valores atrasados, seja no contracheque, seja no precatório, o teriam submetido ao teto constitucional. Ou que verbas indenizatórias estariam a ele sujeito. É preciso reconhecer que o fato do BE ser condicional - só será pago se o servidor se aposentar pela União - não lhe retira o caráter indenizatório. Tampouco o fato de de  servidor e a União assumirem riscos recíprocos quanto aos valores a serem pagos. Afinal, aquele pode receber muito menos do que os valores de contribuição pagos acima do teto do RGPS - basta não se aposentar pela União ou falecer pouco tempo depois de se aposentar sem deixar dependentes-  e essa se arrisca a pagar mais, já que o BE é vitalício. A cláusula condicional não transmuda a natureza do pagamento da indenização, afinal, é acessória a ela. 

Ante o exposto, conclui-se que o teto remuneratório do art. 37, XI da CF/88 não incide sobre o Benefício Especial, sob pena de se permitir o locupletamento ilícito da União e a ofensa ao ato jurídico perfeito.
 
 
 

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