A questão tem atormentado os servidores a administração pública. Deve-se respondê-la analisando a natureza jurídica do BE. Tendo esse em vista, a resposta há de ser negativa, afinal, a natureza do Benefício Especial é incompatível com a limitação ao teto constitucional, como se verá.
Começo destacando que a discussão jurídica é sempre
limitada pelo texto jurídico. É ele e somente ele quem definirá qual a natureza
jurídica do benefício especial e as normas que lhe serão aplicáveis. Não se
define primeiro a natureza para depois saber qual regra jurídica se aplicará ao
benefício. O caminho a ser feito é o inverso. No momento inicial, verifica-se
como o ordenamento trata o benefício especial. Posteriormente, define-se a classificação,
ou a natureza jurídica, que receberá. Consideremos, para defini-la, a coerência
do sistema jurídico - para usar a linguagem de Neil MacCormick e Norberto Bobbio - ou a característica que o sistema ostenta de ter elementos
que guardem entre si relação de não contradição ou compatibilidade. Ver-se-á que
tendo o ordenamento como norte, é difícil qualificar o benefício especial como remuneração limitada ao teto do art. 37, XI.
O
direito ao benefício especial nasce
como eficácia da manifestação expressa e irrevogável de vontade do
servidor público, geradora de eficácia dúplice: a) uma imediata,
consistente na migração de regime e consequente submissão ao teto do
RGPS e diminuição da base de cálculo de contribuição previdenciária; b)
outra protraída, que corresponde ao recebimento do benefício especial
caso o servidor se aposente pelo regime de previdência da União. Feita a
opção,
calcula-se o benefício especial, como determina o art. 3º da Lei
12618/12. Desse
momento em diante, o benefício especial passa a ser reajustado pelo INPC
e
percebido no momento da aposentadoria.O art. 3o , § 8o da Lei 12681/16, que define o benefício especial, assevera que "o exercício da opção a que se
refere o inciso II do caput é irrevogável e irretratável, não
sendo devida pela União e suas autarquias e fundações públicas qualquer
contrapartida referente ao valor dos descontos já efetuados sobre a base de
contribuição acima do limite previsto no caput deste
artigo". Ora se nada será pago como contrapartida relativa ao valor dos
descontos sobre base superior ao teto do RGPS, evidente que o benefício
especial não nasce desse ato. E se não nasce de contribuições
previdenciárias, obviamente não há de ser considerado benefício
previdenciário.
Dois pontos reforçam a tese: a) o servidor perderá o direito ao benefício especial
caso deixe o regime da União; b) os benefícios do regime próprio de previdência
social são, conforme o art. 5º da Lei 9.717/98, os mesmos do RGPS. Nesse, não há nada semelhante ao benefício especial.
Ainda
no que toca à manifestação de
vontade, o art. 2º, parágrafo único da Lei 8666/91, aplicável
analogicamente à hipótese, determina que considera-se
contrato todo e qualquer ajuste entre administração pública e
particulares, em
que haja um acordo de vontades para a formação de vínculo e a
estipulação de
obrigações recíprocas, seja qual for a denominação utilizada. No caso em
pauta,
há contrato de adesão e uma relação sinalagmática entre servidor e a
União. De um lado, o servidor terá como vantagem o recebimento do
benefício especial e a redução da contribuição. A União, de seu turno,
terá como vantagem o fato de não precisar
pagar a contribuição de 22% sobre o subsídio do servidor, que lhe são
exigidos
hoje(art. 8o da Lei 10887/04). Em vez disso, pagará somente 22% sobre o teto do RGPS.
Ademais,
a União alega não ter lastro financeiro para pagar esses 22%, o que a
obriga a, para honrá-los, emitir títulos da dívida pública federal,
remunerados de uma de três maneiras: a) por Selic; b) por um combinação
de IPCA e taxa pré-contratada; c) por uma taxa pré-fixada. O benefício
especial é reajustado pelo INPC e só será pago se o servidor se
aposentar pelo regime da União. Logo, a União troca uma dívida presente,
certa e reajustada por Selic - os 22% que deveria pagar - por outra
futura, incerta e reajustada pelo INPC(o benefício especial), índice
muito menor que os usados para remunerar os que emprestam dinheiro à
União. A incerteza do pagamento nasce das possibilidades do servidor não
se aposentar na União, exonerar-se, ou falecer sem deixar herdeiros
necessários. Em qualquer dessas circunstâncias, não será necessário à
União pagar o benefício especial.
Com
a opção do servidor pela migração, nasce ato jurídico perfeito - conceito agora expressamente aplicado ao BE pela Lei 14463/2022 - cuja
eficácia é dúplice: a) a submissão ao teto do RGPS ; b) o direito ao
benefício especial, cujo gozo depende da aposentadoria. Temos aqui o
conceito firmado no art. 6º , § 1º, da Lei de Introdução às Normas do
Direito Brasileiro, segundo o qual reputa-se ato jurídico perfeito o já
consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou. Modificar o
benefício especial, após a manifestação do servidor pela migração – a
qual é irrevogável e irretratável, segundo o art. 3º da Lei 12618/12 – é
ignorar a proteção conferida ao ato jurídico perfeito pelo art. 5º,
XXXVI da CF e chancelar desrespeito à boa-fé objetiva. Afinal,
permitir-se-ia ao Estado tirar proveito da migração – já que seus custos
serão reduzidos – e não dar cumprimento à oferta que motivou o servidor
a migrar.
Importante
lembrar que o STF, na Súmula Vinculante 1, decidiu que “ofende a
garantia constitucional do ato jurídico perfeito a decisão que, sem
ponderar as circunstâncias do caso concreto, desconsidera a validez e a
eficácia de acordo constante de termo de adesão instituído pela Lei
Complementar nº 110/2001”. Nesse acordo, o trabalhador aceitava
determinada complementação de correção monetária nas contas vinculadas.
Alguns, porém, tentaram ainda discuti-la em juízo. Para o STF, o acordo,
concretizado por meio de adesão, impedia a discussão em virtude da
proteção conferida pelo ato jurídico perfeito. Ora, se à adesão ao
acordo do FGTS reconheceu-se a eficácia própria do ato jurídico
perfeito, a mesma postura se espera do STF em relação à adesão à
migração com recebimento de benefício especial. A imutabilidade do
benefício especial parece afastar-lhe ainda mais da natureza de mero
elemento de regime jurídico previdenciário.
Acrescente-se
que a migração não leva o servidor, ao contrário do que usualmente se
diz, a regime de previdência novo. O regime é exatamente o mesmo – o
RPPS - mas com a limitação do valor do benefício previdenciário ao teto
do RGPS. Se não se cria regime previdenciário novo, seria possível
considerar que haveria novo benefício previdenciário, o benefício
especial? Parece mais respeitoso à coerência do ordenamento considerar
que o benefício especial de previdenciário pouco tem.
Os
que defendem tese oposta poderiam dizer que o benefício especial é
previdenciário porque só é usufruído na aposentadoria e é calculado
segundo o tempo de contribuição. Quanto ao primeiro ponto, essencial
lembrar que embora o gozo se dê na aposentadoria, a aquisição do direito
ocorre na migração. Já quanto ao segundo, os critérios de cálculo pouco
importam na definição das normas a serem aplicadas. Veja-se que o
legislador poderia perfeitamente ter usado critérios sem nenhuma relação
com o tempo usado para aposentadoria. Basta lembrar que fosse alterado o
tempo de aposentadoria via emenda constitucional, a forma de cálculo do
benefício especial não sofreria alterações, salvo se modificada também a
lei que a prevê. Até o dia 30 de novembro de 2022, por força da MP 1119/22 convertida na Lei 14463/2022, os critérios de cálculo do BE repetem parâmetros da EC 41, e não da EC 103, que a revogou.
Por
fim, o benefício especial não se confunde com a aposentadoria. A uma,
porque nasce de contrato entre servidor e União. A duas, o servidor perderá completamente o direito a ele ao trocar o
regime de previdência da União por outro. A três, a aposentadoria será
gozada junto com o benefício especial e a ninguém é dado usufruir duas
aposentadorias pelo mesmo vínculo estatutário. A quatro, porque não há nada semelhante ao Benefício Especial no RGPS, e, por força da Lei, só se pode pagar aos usuários do RPPS benefício pago aos do RGPS, consoante a Lei 9717/98 e 10887/04. A quatro porque,
diversamente da aposentadoria e de qualquer outro benefício
previdenciário, é calculado, ao menos para parte da doutrina, no momento da migração, ou seja previamente à
aposentadoria, e depois reajustado pelo INPC até ser pago quando o
servidor se aposentar. Além dessa necessidade de cálculo prévio ser
inerente ao equilíbrio da relação sinalagmática, a lei 12618/12 no art. 3º,
parágrafos quinto e sexto, distingue entre o benefício especial
calculado e o benefício especial pago. Não há, portanto, qualquer
possibilidade de se afirmar existente relação de acessoriedade entre
aposentadoria e o benefício especial que poderia levar à conclusão
errônea de que esse ostenta caráter previdenciário e não civil.
Vê-se,
pois, que as marcantes diferenças entre o benefício especial e os
previdenciários não permitem inclui-lo no rol desses. Se isso for feito,
é necessário destacar a imutabilidade dada pela proteção ao ato
jurídico perfeito. Haveria características previdenciárias, nascidas da
forma de cálculo, mas não a propensão à mudança a que sujeito os
elementos do regime jurídico previdenciário".
A
posição aqui externada foi adotada pela Advocacia-Geral da União que cita
expressamente trecho do artigo de minha autoria sobre o tema. O parecer da AGU,
nos Processo 03154.004642/2018-50, foi aprovado pelo presidente da
República em 27/05/2020 para os fins do disposto no art. 40, §
1º, da Lei Complementar nº 73 (DOU, n. 100, Seção1, p. 118). Reza o dispositivo
que "o parecer aprovado e publicado juntamente com o despacho presidencial vincula
a Administração Federal, cujos órgãos e entidades ficam obrigados a lhe dar
fiel cumprimento".
Como se vê, a natureza do benefício especial é de indenização (ou compensão, nos termos da do parecer da AGU) civil, nascida de contrato firmado entre servidor e União. O
art. 40, § 11, da Constituição Federal reza que "aplica-se o limite
fixado no art. 37, XI, à
soma total dos proventos de inatividade, inclusive quando decorrentes da
acumulação de cargos ou empregos públicos, bem como de outras atividades
sujeitas a contribuição para o regime geral de previdência social, e ao
montante
resultante da adição de proventos de inatividade com remuneração de
cargo
acumulável na forma desta Constituição, cargo em comissão declarado em
lei de
livre nomeação e exoneração, e de cargo eletivo". O benefício especial
não se enquadra na categoria proventos de atividade. Sequer é
remuneratório, o que o torna indiferente às restrições do art. 37, XI,
da CF que abarca "outra espécie remuneratórias". Sobre ele não incide contribuição previdenciária, o que o afastaria da categoria "proventos de outras atividades sujeita a contribuição" Isso significa que não
se aplica ao benefício especial a tese fixada pelo STF ao analisar o
tema de repercussão geral 359. Ei-la:
"Ocorrida a morte do instituidor da pensão em momento posterior ao da
Emenda Constitucional nº 19/1998, o teto constitucional previsto no
inciso XI do artigo 37 da Constituição Federal incide sobre o somatório
de remuneração ou provento e pensão percebida por servidor".
Possibilitar que se pague o Benefício Especial em valor diverso do contratado com a União, sob o argumento de que se estaria respeitando o teto do art. 37, XI, seria ofender frontalmente a garantia do ato jurídico perfeito. O princípio pacta sunt servanda também se aplica contra o Estado , o qual há de se comportar com boa-fé diante do administrado, como decorrência do princípio da moralidade no art. 37, caput da Carta de 88. Considera-se a boa-fé um elemento dessa última derivado. Inserir a marteladas o conceito de benefício especial no espectro coberto pelo art. 37, XI para permitir não é, com a devida vênia, solução jurídica razoável. O art.37, XI não é instrumento apto a livrar a União do cumprimento de suas obrigações contratuais.
A conclusão acima exposta é contrária ao parecer da Secretaria de Fiscalização de Integridade de Atos e Pagamentos do Pessoal e de Benefícios Sociais do TCU, nos autos da Representação 036.627/2019-4. Com a devida vênia, ao nominar o benefício especial de benefício previdenciário sui generis para justificar a incidência do teto, a Secretaria acaba se desviando da legislação pertinente, como acima demonstrado num momento crucial para os servidores públicos. Contraditoriamente, a mesma SEFIPE afirma não incidir o teto quanto ao pagamento dos pensionistas. Chegar-se-á ao inusitado da viúva receber valores maiores que o aposentado em vida, já que seu BE, não sofre os cortes dos postos na EC 103 para o cálculo da pensão e será sempre recebido integralmente.
Por fim, os defensores da tese aposta poderiam afirmar que o BE constitui-se em vantagem pessoal referida no art. 37, XI, que estabelece o teto constitucional. Tal entendimento está equivocado. O conceito de vantagem pessoal relaciona-se a retribuição rotineira percebida pelo titular de um cargo em razão do exercício do seu cargo atual ou de cargo diverso, não a negócio jurídico com caráter sinalagmático. Imaginar o contrário seria pensar que servidores que recebessem valores atrasados, seja no contracheque, seja no precatório, o teriam submetido ao teto constitucional. Ou que verbas indenizatórias estariam a ele sujeito. É preciso reconhecer que o fato do BE ser condicional - só será pago se o servidor se aposentar pela União - não lhe retira o caráter indenizatório. Tampouco o fato de de servidor e a União assumirem riscos recíprocos quanto aos valores a serem pagos. Afinal, aquele pode receber muito menos do que os valores de contribuição pagos acima do teto do RGPS - basta não se aposentar pela União ou falecer pouco tempo depois de se aposentar sem deixar dependentes- e essa se arrisca a pagar mais, já que o BE é vitalício. A cláusula condicional não transmuda a natureza do pagamento da indenização, afinal, é acessória a ela.
Ante o exposto, conclui-se que o teto remuneratório do art. 37, XI da CF/88 não incide sobre o Benefício Especial, sob pena de se permitir o locupletamento ilícito da União e a ofensa ao ato jurídico perfeito.
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