sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Da não incidência do teto do serviço público sobre o benefício especial

 

 

 Aproveitarei texto já escrito por mim sobre a natureza do benefício especial para tratar da questão da incidência do teto do serviço público. Eis o que disse em post anterior sobre o BE:

 

"A discussão jurídica é sempre limitada pelo texto jurídico. É ele e somente ele quem definirá qual a natureza jurídica do benefício especial e as normas que lhe serão aplicáveis. Não se define primeiro a natureza para depois saber qual regra jurídica se aplicará ao benefício. O caminho a ser feito é o inverso. No momento inicial, verifica-se como o ordenamento trata o benefício especial. Posteriormente, define-se a classificação, ou a natureza jurídica, que receberá. Consideremos, para defini-la, a coerência do sistema jurídico, ou a característica que o sistema ostenta de ter elementos que guardem entre si relação de coerência, ou de não contradição. Ver-se-á que tendo o ordenamento como norte, é difícil qualificar o benefício especial como parte de regime jurídico previdenciário e portanto sujeito à alteração após a migração.


O direito ao benefício especial nasce como eficácia da manifestação expressa  e irrevogável de vontade do servidor público, geradora de eficácia dúplice: a) uma imediata, consistente na migração de regime e consequente submissão ao teto do RGPS e diminuição da base de cálculo de contribuição previdenciária; b)  outra protraída, que corresponde ao recebimento do benefício especial caso o servidor se aposente pelo regime de previdência da União.  Feita a opção, calcula-se o benefício especial, como determina o art. 3º da Lei 12618/12. Desse momento em diante, o benefício especial passa a ser reajustado pelo INPC e percebido no momento da aposentadoria.O art. 3o , § 8o  da Lei 12681/16, que define o benefício especial, assevera que "o exercício da opção a que se refere o inciso II do caput é irrevogável e irretratável, não sendo devida pela União e suas autarquias e fundações públicas qualquer contrapartida referente ao valor dos descontos já efetuados sobre a base de contribuição acima do limite previsto no caput deste artigo". Ora se nada será pago como contrapartida relativa ao valor dos descontos sobre base superior ao teto do RGPS, evidente que o benefício especial não nasce desse ato. E se não nasce de contribuições previdenciárias, obviamente não há de ser considerado benefício previdenciário. 
Dois pontos reforçam a tese: a) o servidor perderá o direito ao benefício especial caso deixe o regime da União; b)  os benefícios do regime próprio de previdência social são, conforme o art. 5º  da Lei 9.717/98, os mesmos do RGPS. Nesse, não há nada semelhante ao benefício especial.


Ainda no que toca à manifestação de vontade, o art. 2º, parágrafo único da Lei 8666/91, aplicável analogicamente à hipótese, determina que considera-se contrato todo e qualquer ajuste entre administração pública e particulares, em que haja um acordo de vontades para a formação de vínculo e a estipulação de obrigações recíprocas, seja qual for a denominação utilizada. No caso em pauta, há contrato de adesão e uma relação sinalagmática entre servidor e a União.  De um lado, o servidor terá como vantagem o recebimento do benefício especial e a redução da contribuição. A União, de seu turno, terá como vantagem o fato de não precisar pagar a contribuição de 22% sobre o subsídio do servidor, que lhe são exigidos hoje(art. 8o da Lei 10887/04). Em vez disso, pagará somente 22% sobre o teto do RGPS. 

Ademais, a União alega não ter lastro financeiro para pagar esses 22%, o que a obriga a, para honrá-los,  emitir títulos da dívida pública federal, remunerados de uma de três maneiras: a) por Selic; b) por um combinação de IPCA e taxa pré-contratada; c) por uma taxa pré-fixada. O benefício especial é reajustado pelo INPC e só será pago se o servidor se aposentar pelo regime da União. Logo, a União troca uma dívida presente, certa e reajustada por Selic - os 22% que deveria pagar -  por outra futura, incerta e reajustada pelo INPC(o benefício especial), índice muito menor que os usados para remunerar os que emprestam dinheiro à União. A incerteza do pagamento nasce das possibilidades do servidor não se aposentar na União, exonerar-se, ou falecer sem deixar herdeiros necessários. Em qualquer dessas circunstâncias, não será necessário à União pagar o benefício especial.


 Com a opção do servidor pela migração, nasce ato jurídico perfeito cuja eficácia é dúplice: a) a submissão ao teto do RGPS ; b) o direito ao benefício especial, cujo gozo depende  da  aposentadoria. Temos aqui o conceito firmado no art. 6º , § 1º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, segundo o qual  reputa-se ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou. Modificar o benefício especial, após a manifestação do servidor pela migração – a qual é irrevogável e irretratável, segundo o art. 3º da Lei 12618/12 – é ignorar a proteção conferida ao ato jurídico perfeito pelo art. 5º, XXXVI da CF e chancelar desrespeito à boa-fé objetiva. Afinal, permitir-se-ia ao Estado tirar proveito da migração – já que seus custos serão reduzidos – e não dar cumprimento à oferta que motivou o servidor a migrar.  

 Importante lembrar que o STF, na Súmula Vinculante 1, decidiu que  “ofende a garantia constitucional do ato jurídico perfeito a decisão que, sem ponderar as circunstâncias do caso concreto, desconsidera a validez e a eficácia de acordo constante de termo de adesão instituído pela Lei Complementar nº 110/2001”. Nesse acordo, o trabalhador aceitava determinada complementação de correção monetária nas contas vinculadas. Alguns, porém, tentaram ainda discuti-la em juízo. Para o STF, o acordo, concretizado por meio de adesão, impedia a discussão em virtude da proteção conferida pelo ato jurídico perfeito. Ora, se à adesão ao acordo do FGTS reconheceu-se a eficácia própria do ato jurídico perfeito, a mesma postura se espera do STF em relação à adesão à migração com recebimento de benefício especial. A imutabilidade do benefício especial parece afastar-lhe ainda mais da natureza de mero elemento de regime jurídico previdenciário.

 Acrescente-se que a migração não leva o servidor, ao contrário do que usualmente se diz, a regime de previdência novo. O regime é exatamente o mesmo – o RPPS - mas com a limitação do valor do benefício previdenciário ao teto do RGPS. Se não se cria regime previdenciário novo, seria possível considerar que haveria novo benefício previdenciário, o benefício especial? Parece mais respeitoso à coerência do ordenamento considerar que o benefício especial de previdenciário pouco tem.

Os que defendem tese oposta poderiam dizer que o benefício especial é previdenciário porque só é usufruído na aposentadoria e é calculado segundo o tempo de contribuição. Quanto ao primeiro ponto, essencial lembrar que embora o gozo se dê na aposentadoria, a aquisição do direito ocorre na migração. Já quanto ao segundo, os critérios de cálculo pouco importam na definição das normas a serem aplicadas. Veja-se que o legislador poderia perfeitamente ter usado critérios sem nenhuma relação com o tempo usado para aposentadoria. Basta lembrar que fosse alterado o tempo de aposentadoria via emenda constitucional, a forma de cálculo do benefício especial não sofreria alterações, salvo se modificada também a lei que a prevê. 
 
Por fim, o benefício especial não se confunde com a aposentadoria. A uma, porque o servidor perderá completamente o direito a ele ao trocar o regime de previdência da União por outro. A duas,  a aposentadoria será gozada junto com o benefício especial e a ninguém é dado usufruir duas aposentadorias pelo mesmo vínculo estatutário. A três, porque diversamente da aposentadoria e de qualqeur outro benefício previdenciário, é calculado no momento da migração, ou seja previamente à aposentadoria, e depois reajustado pelo INPC até ser pago quando o servidor se aposentar. Além dessa necessidade de cálculo prévio ser inerente ao equilíbrio da relação sinalagmática, a lei 12618  no art. 3º, parágrafos quinto e sexto, distingue entre o benefício especial calculado e o benefício especial pago. Não há, portanto, qualquer possibilidade de se afirmar existente relação de acessoriedade entre aposentadoria e o benefício especial que poderia levar à conclusão errônea de que esse ostenta caráter previdenciário e não civil.

 Vê-se, pois, que as marcantes diferenças entre o benefício especial e os previdenciários não permitem inclui-lo no rol desses. Se isso for feito, é necessário destacar a imutabilidade dada pela proteção ao ato jurídico perfeito. Haveria características previdenciárias, nascidas da forma de cálculo, mas não a propensão à mudança a que sujeito os elementos do regime jurídico previdenciário".  
 
 

A posição aqui externada foi adotada pela Advocacia-Geral da União que cita expressamente trecho do artigo de minha autoria sobre o tema. O parecer da AGU, nos Processo 03154.004642/2018-50, foi aprovado pelo presidente da República em 27/05/2020 para os fins  do disposto no art. 40, § 1º, da Lei Complementar nº 73 (DOU, n. 100, Seção1, p. 118). Reza o dispositivo que § 1º O parecer aprovado e publicado juntamente com o despacho presidencial vincula a Administração Federal, cujos órgãos e entidades ficam obrigados a lhe dar fiel cumprimento.

 

Em vista da natureza do benefício especial, não incide, quanto a ele, o teto do serviço público federal previsto no art. 37, XI, da CF/88.  O art. 40, § 11, da Constituição Federal reza que "aplica-se o limite fixado no art. 37, XI, à soma total dos proventos de inatividade, inclusive quando decorrentes da acumulação de cargos ou empregos públicos, bem como de outras atividades sujeitas a contribuição para o regime geral de previdência social, e ao montante resultante da adição de proventos de inatividade com remuneração de cargo acumulável na forma desta Constituição, cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração, e de cargo eletivo". O benefício especial não se enquadra na categoria proventos de atividade. Sequer é remuneratório, o que o torna indiferente às restrições do art. 37, XI, da CF que abarca "outra espécie remuneratórias". Isso significa que não se aplica ao benefício especial a tese fixada pelo STF ao analisar  o tema de repercussão geral 359. Ei-la:

"Ocorrida a morte do instituidor da pensão em momento posterior ao da Emenda Constitucional nº 19/1998, o teto constitucional previsto no inciso XI do artigo 37 da Constituição Federal incide sobre o somatório de remuneração ou provento e pensão percebida por servidor".

 

Sem dúvida, a não incidência do teto do RGPS essa é mais uma vantagem do benefício especial em relação aos recebimento de proventos de aposentadoria e pensão. A próxima questão a ser respondida é: incide imposto de renda sobre o benefício especial ante o seu caráter indenizatório. Adianto que a resposta é negativa, mas deixo para abordar o assunto com mais profundidade em outro post.

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