
Em
doze de julho de 2017, o juiz Sérgio Moro julgou parcialmente
procedente os pedidos constantes em ação penal oferecida pelo
Ministério Público Federal em face do ex-presidente Luis Inácio
Lula da Silva. Na sentença, condenou-se Lula a nove anos e seis
meses de prisão por um crime de corrupção passiva (art. 317 do
Código Penal) e um crime de lavagem de dinheiro (art. 1°, V, da Lei
9.613/98). Recorreram ao Tribunal Regional Federal da 4ª
Região o MPF, titular da ação penal, e a defesa de Lula. Essa,
pleiteando a absolvição; aquele, o reconhecimento da prática de
três crimes de lavagem e dois de corrupção, com o consequente
aumento da pena. Mantida a condenação pelo TRF4, estará Lula
excluído da disputa por corações e mentes dos eleitores? Antes de
responder, caro(a) e-leitor(a), preciso que entenda como alguém se
torna candidato. Esse e outros pontos relativos ao julgamento e suas
consequências para a eleição serão abordados abaixo.
1)
Como alguém se torna candidato?
É
falsa a noção de que qualquer um pode ser candidato. Somente o será
aquele que obtiver da justica eleitoral o registro de candidatura.
Esse, portanto, é o ato jurídico que tem como eficácia a outorga
do direito de ser votado, como ensina o professor Adriano Soares, em
mais uma de suas grandes contribuições para a ciência do direito
eleitoral. Segundo o art. 11 da Lei 9504/97, partidos e coligações
solicitarão o registro até o dia 15 de agosto do ano das eleições.
Se não o fizerem, o próprio político escolhido pela convenção
partidária poderá fazê-lo.
2) Como se obtém
o registro de candidatura?
É
preciso demonstrar para a Justiça Eleitoral que o político
ostenta condições de elegibilidade(requisitos positivos do ato
jurídico que devem estar presentes para sua formação) e que não
incide em nenhuma hipótese de inelegibilidade(requisito negativo
cuja presença impede a concessão do registro). Nos termos do art.
11,§
10, da Lei 9.504/97, as condições de elegibilidade e as causas de
inelegibilidade devem ser aferidas no momento da formalização do
pedido de registro da candidatura.
3)
Quem julgará o pedido registro de candidatura de Lula?
O órgão competente
para analisar o requerimento de registro de candidatura nas eleições
presidenciais é o Tribunal Superior Eleitoral. Poderá o TSE
reconhecer de ofício a inelegibilidade de Lula ou por provação do
Ministério Público Federal, via Procuradoria-Geral Eleitoral,
partidos, coligações e candidatos, os quais poderão oferecer ação
de impugnação de registro de candidatura apontando óbices à
concessão do registro(art. 3º
da LC 64/90). Da decisão do TSE caberá recurso ao STF.
4)
Mantida a condenação de Lula no julgamento do recurso pelo TRF4,
ele estará automaticamente fora da disputa presidencial?
Não.
A condenação em segundo grau do TRF4 pela prática de
corrupção e lavagem de dinheiro é hipótese de inelegibilidade
prevista no art. 1°, I,
e, da Lei das Inelegibilidades com a redação que lhe foi dada pela
LC 134/2010, a Lei da Ficha Limpa. Como toda
inelegibilidade, será analisada no momento do requerimento de
registro de candidatura de Lula pelo TSE (art. 11 da Lei 9.504/97).
5) Lula tem algum
instrumento processual disponível para afastar sua inelegibilidade
nascida de condenação do TRF4 ?
Sim.
Se não houver divergência entre os desembargadores em relação a
nenhuma das condenações, Lula poderá manejar Recurso Especial, ao
STJ, e Recurso Extaordinário, ao STF, pleiteando a suspensão
cautelar da eficácia da decisão geradora de inelegibilidade). Para
o TSE (súmula 44), essa suspensão pode ser conferida tanto pelo
relator, lastreado no poder geral de cautela, quanto pelo colegiado,
com fundamento no art. 26-C, da LC 64/90. De acordo com o
dispositivo, “o
órgão colegiado do tribunal ao qual couber a apreciação do
recurso contra as decisões colegiadas a que se referem as alíneas
d,
e, h, j, l e
n
do inciso I do art. 1o
poderá, em caráter cautelar, suspender a inelegibilidade sempre que
existir plausibilidade da pretensão recursal e desde que a
providência tenha sido expressamente requerida, sob pena de
preclusão, por ocasião da interposição do recurso”.
Como
bem lembra o grande colega e professor Vladimir Aras
(https://vladimiraras.blog/2018/01/15/o-julgamento-de-lula/),
apesar da posição do TSE sobre a possibilidade do relator suspender
monocraticamente a inelegibildiade, o STJ e o STF já decidiram que
tal poder cabe exclusivamente ao órgão colegiado (HC 113103/MT,
Rel. Min. Ricardo Lewandowski)
6)
São três os integrantes do colegiado que julgará Lula. A
condenação pelo placar de 2 x 1 gera consequências diversas
daquela por unanimidade?
Ausente
unanimidade dos julgadores quanto à condenação de qualquer dos
crimes - não esqueçamos que Lula foi condenado em primeira
instância pela prática de dois crimes e que o MPF pediu ao TRF sua
condenação por mais delitos -, Lula poderá opor embargos
infringentes e de nulidade para o próprio TRF4(art.609 do CPP). A
mera interposição dos embargos infringentes é suficiente a
suspender a eficácia da condenação que teria como eficácia a
imposição de inelegibilidade. Ressalte-se que os embargos
infringentes são de uso exclusivo da defesa. Nada do que for dito
aqui em relação a eles, portanto, servirá ao Ministério Público.
7)
Havendo unanimidade dos três juízes federais do TRF4 quanto à
condenação de alguns crimes e divergência quanto à de outros, o
que acontecerá ?
O
art. 498 do antigo CPC, inserido pela pela Lei nº 10.352, de
26.12.2001, previa que quando o acórdão contivesse julgamento por
maioria de votos e julgamento unânime, e fossem interpostos embargos
infringentes, o prazo para recurso extraordinário ou recurso
especial, relativamente ao julgamento unânime, ficaria sobrestado
até a intimação da decisão nos embargos. Traduzindo: havendo
condenações unânimes e não unânimes, o prazo do recurso especial
e do extraordinária ficaria suspenso até o julgamento dos embargos.
Ainda na vigência do CPC antigo, o STF resolveu (AI
432884 QO,
DJ
de 16.9.2005) que o art. 498 não se aplicaria ao processo penal, nos
termos de sua Súmula 355, que reza: “em caso de embargos
infringentes parciais, é tardio o recurso extraordinário interposto
após o julgamento dos embargos, quanto à parte da decisão
embargada que não fora por eles abrangida”. Considerando que o
novo CPC não mais previu os embargos infringentes, razão pela qual
não repetiu o teor do art. 498 do seu antecessor, e tendo em vista
a súmula 355, a defesa de Lula deverá oferecer o Recurso
Extraordinário e/ou o Recurso Especial contra a parte unânime e os
embargos infringentes em relação ao restante. Esses servirão,
portanto, para suspender somente as condenações em que houve
divergência. Quanto às demais, será necessário obter um
provimento cautelar para suspender a inelegibilidade do STJ, em
recurso especial, ou do STF, em recurso extraordinário.
8)
Se Lula não conseguir a reforma ou a suspensão da eficácia de
eventual condenação do TRF4, o que acontece? O TSE pode rever a
correção da decisão da Justiça Federal?
Não,
o TSE não pode rever a correção da decisão geradora de
inelegibilidade. Se Lula não conseguir a suspensão, a Justiça
eleitoral, ao apreciar o requerimento de registro de candidatura de
Lula, deve afirmar a inelegibilidade e indeferi-lo.
9)
Mesmo com o registro indeferido pelo TSE, Lula poderá continuar
praticando atos de campanha?
Sim,
desde que não tenha havido julgamento definitivo do requerimento de
registro de candidatura. Em outros termos: Lula poderá fazer
campanha na pendência de recurso ao STF ou ao próprio TSE; a
validade de seus votos, porém, estará condicionada ao deferimento
do registro pela instância recursal. Tal conclusão é fundada no
art. 16-A da Lei 9504/97, segundo o qual “o
candidato cujo registro esteja sub
judice poderá
efetuar todos os atos relativos à campanha eleitoral, inclusive
utilizar o horário eleitoral gratuito no rádio e na televisão e
ter seu nome mantido na urna eletrônica enquanto estiver sob essa
condição, ficando a validade dos votos a ele atribuídos
condicionada ao deferimento de seu registro por instância superior”.
Havendo julgamento definitivo, Lula não poderá mais praticar os
atos de campanha. É improvável que em menos de dois meses(tempo
entre o término do prazo para o requerimento de registro e as
eleições) o processo seja finalizado.
10)
Qual o prazo para o
partido ou a coligação susbsituir
Lula?
Conforme
o art. 13 da Lei 9504/97, é facultado ao partido ou coligação
substituir candidato que for considerado inelegível, renunciar ou
falecer após o termo final do prazo do registro ou, ainda, tiver seu
registro indeferido ou cancelado. O pedido de substituição há de
ser apresentado até 20 dias antes do pleito (art. 13, §3°).
11) E se o
TRF4 julgar improcedentes eventuais embargos infringentes após Lula
pleitear o registro de canidatura?
Dispõe
o art. 11, §10, da Lei 9054/97 que as
condições de elegibilidade e as causas de inelegibilidade devem ser
aferidas no momento da formalização do pedido de registro da
candidatura, ressalvadas as alterações, fáticas ou jurídicas,
supervenientes ao registro que afastem a inelegibilidade. Vê-se que
as alterações fáticas supervenientes que importarão para o
registro de candidatura são somente as que afastam a inelegibilidade
e não as que a concretizam. Assim, se o julgamento de improcedência
de embargos ocorrer após o requerimento do registro, não poderá
ser considerado no processo que lhe é pertinente. Eventuais
inelegibilidades supervenientes ao registro serão tratadas em
recurso contra expedição de diploma(art. 262 do Código Eleitoiral)
desde que surjam até a data do pleito, nos termos da Súmula 47 do
TSE.
A
diplomação pela Justiça Eleitoral é ato jurídico apto a mudar ao
status do candidato eleito. O mandato, em verdade, não nasce da
aclamação pela vontade popular: essa é apenas um dos
condicionantes fáticos do ato jurídico diplomação. Refiro-me
aquilo que Pontes de Miranda denominou suporte fático, o qual
corresponde a “fato, evento ou conduta que poderá ocorrer no mundo
e que por ter sido considerado relevante, tornou-se objeto da
normatividade jurídica”([2]
MELLO, Marcos Bernades de. Teoria
do fato jurídico: plano da existência. São
Paulo: Saraiva, 2014, p. 81)
. Tanto
a diplomação tem dentre seus efeitos a outorga do mandato ao
ganhador das eleições que o início da prerrogativa de foro no
âmbito criminal se dá com a expedição de diploma e não com a
vitória nas urnas.
Se a diplomação é ato jurídico, para se verificar sua existência
é preciso examinar tudo que lhe é anterior e que sirva como
condicionante. Por
isso, considero que a tese sumulada pelo TSE, que impõe a data da
eleição como marco temporal da eficácia da inelegibilidade
superveniente, está incorreta, em especial se vista através das
lentes da teoria do fato jurídico e do caráter sistêmico do
ordenamento. A lei não estabeleceu como limite temporal para a
eficácia da inelegibilidade superveniente o dia do pleito. Se a lei
não o fez, o TSE não poderia fazê-lo. Para mais informações,
acesse aqui
o artigo sobre o tema.
12)
E se Lula conseguir a suspensão cautelar de inelegibilidade prevista
no art. 26-C, disputar a eleição e depois dela a cautelar for
revogada?
Se Lula
obtiver a suspensão cautelar do órgão competente para a
apreciação do recurso (pode ser o TRF4, em embargos infringentes, o
STJ, em Recurso Especial, ou o STF, em Recurso Extraordinário), o
julgamento do recurso terá prioridade sobre todos os demais, à
exceção dos mandados de segurança e de habeas corpus(art. 26-C,
§1°,
da LC 64/90). Mantida a condenação ou revogada a suspensão,
“serão desconstituídos o registro ou diploma eventualmente
concedidos ao recorrente”, conforme o art .26-C, §3°, da LC
64/90. Aqui, a norma que surge do texto legal é claríssima:
independentemente do momento em que a condenação seja mantida ou a
suspensão revogada -antes ou depois da eleição, do requerimento de
registro ou mesmo da diplomação - a consequência será sempre a
revogação do diploma ou desconstituição do registro.
Analogicamente, o mesmo raciocínio se aplica às cautelares
concedidas com base no poder geral de cautela referidas na súmula 44
do TSE.
O
TSE ouvirá a defesa de Lula, caso a hipótese aqui levantada
aconteça, em vista da Súmula 66, que reza:
“a
incidência do § 2º do art. 26-C da LC nº 64/90 não acarreta o
imediato indeferimento do registro ou o cancelamento do diploma,
sendo necessário o exame da presença de todos os requisitos
essenciais à configuração da inelegibilidade, observados os
princípios do contraditório
e da ampla defesa”.
13)
Se Lula vencer o pleito eleitoral, e posteriormente for revogada a
suspensão liminar e/ou mantida a condenação do TRF4, com a
consequente cassação do diploma, teremos novas eleições?
Cassado
o diploma, haverá novas eleições: diretas, se a vacância se der
nos dois primeiros anos de mandato; indireta, nos dois últimos. Há
de se aplicar a norma extraída do art. 81 da CF, que prevalece sobre
a do art. 224 do Código Eleitoral, de acordo com o qual “se a
nulidade atingir a mais de metade dos votos do país nas eleições
presidenciais(...) julgar-se-ão prejudicadas as demais votações e
o Tribunal marcará dia para nova eleição dentro do prazo de 20
(vinte) a 40 (quarenta) dias”. Esclareça-se que nos termos do art. 86, §4º, da CF, o Presidente da República, na vigência de seu
mandato, não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas
funções. Não parece possível dizer que os crimes pelos quais Lula foi acusado são "estranhos ao exercício de suas funções", ainda que praticados durante mandatos anteriores. Por isso, se Lula vencer as eleições e for diplomado, os processos a que responde não deverão ser suspensos, razão pela qual cautelar eventualmente concedida poderá ser revogada a qualquer momento.
14) Resumindo...
Em suma, e-leitor:
a) O julgamento pelo TRF4 não definirá por si o destino de Lula.
b)
Quem julgará se Lula é inelegível ou não é a Justiça Eleitoral
e, eventualmente, o STF.
c)
Havendo condenação não unânime, Lula poderá se valer dos
embargos infringentes ao próprio TRF4 e suspender a eficácia da
inelegibilidade.
d)
Se houver condenações unânimes, Lula precisará se utilizar do
Recurso Especial e do Extraordinária e pedir, respectivamente, ao
STJ e ao STF a suspensão da inelegibilidade com base no art. 26-C da
LC 64/90
e)
Lula poderá praticar todos os atos de campanha enquanto seu
requerimento de registro de campanha não for definitivamente
julgado;
f)
Caso Lula consiga disputar a eleição graças a cautelares, se elas
caírem, ele, mesmo que vença o pleito, terá o diploma
desconstituído e novas eleições serão marcadas;