sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Voto do Min. Toffoli na discussão sobre a Lei Ficha Limpa

15/02/2012    PLENÁRIO
AÇÃO DECLARATÓRIA DE CONSTITUCIONALIDADE 29 DISTRITO FEDERAL
AÇÃO DECLARATÓRIA DE CONSTITUCIONALIDADE 30 DISTRITO FEDERAL
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 4.578 DISTRITO FEDERAL
VOTO - VISTA
O SENHOR MINISTRO DIAS TOFFOLI:
Cuidam-se de ações declaratórias de constitucionalidade propostas pelo Partido Popular Socialista – PPS e pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, por meio das quais se busca atestar a constitucionalidade da Lei Complementar no 135/2010 (“Lei da Ficha Limpa”) e da sua aplicação a atos e fatos jurídicos que tenham ocorrido antes do advento do referido diploma legal. 


Tem-se, ainda, a ação direta de inconstitucionalidade ajuizada pela Confederação Nacional das Profissões Liberais - CNPL, cujo objeto é, especificamente, a alínea “m” do inciso I do art. 1o da LC no 64/90, na redação que lhe conferiu a LC no 135/10.
De início, esclareço que, embora na ADC no 30, o pedido formulado seja de declaração de constitucionalidade da Lei Complementar no 135/10, em consonância com o voto do eminente relator e com os debates ocorridos neste plenário nas assentadas anteriores, conheço parcialmente da ADC no 30, restringindo-me à análise da constitucionalidade das hipóteses de inelegibilidade introduzidas, pela Lei Complementar no 135/10, ao art. 1o, inciso I, da Lei Complementar no 64/90.
Essa ressalva se faz necessária, tendo em vista que a LC no 135/10 contém outras previsões autônomas em relação às alterações das causas de inelegibilidade, as quais não serão objeto de exame nesse momento. Feita essa restrição, passo à análise de mérito das ações. Senhores Ministros, é induvidoso que, sob o prisma político, a
propulsão do então projeto de lei, o qual culminou com a edição da Lei Complementar no 135/10, refletiu momento de relevante mobilização social, tanto quanto constituiu vivência da democracia direta pelo povo brasileiro.
Vindo a lume a discussão sobre a incidência da norma sobre as eleições de 2010, a qual foi afastada com amparo no art. 16 da Lei Fundamental, remanesce o interesse da coletividade nacional na apreciação pela Corte do conteúdo próprio da legislação e o seu reflexo nos processos eleitorais vindouros.
Vale reprisar, como antecedente à análise destas ações, as premissas que coloquei quando do julgamento dos RE 630147, RE 631102 e RE 633703, acerca do papel institucional desempenhado pelo STF na guarida dos direitos e interesses das minorias deficientemente representadas na composição do corpo legiferante.
A) O PAPEL POLÍTICO-CONSTITUCIONAL DO STF COMO FILTRO DA VONTADE DAS MAIORIAS CONTRA AS MINORIAS
O caso apresenta profundas implicações com o anseio social por práticas políticas éticas e pela eliminação, no sistema eleitoral, de agentes que se mostraram desafiadores da moralidade, assim entendida não sob o prisma do Direito Administrativo, mas sob a óptica do conjunto de valores comuns em torno de condutas socialmente adequadas.
Esse discurso ético tem, por conseguinte, forte apelo nas instâncias extrajudiciais e nós, magistrados da Suprema Corte, não ficamos alheios a esses processos e ao impacto dessas emanações coletivas sobre nossa forma de enxergar os problemas trazidos ao Poder Judiciário.
Algumas vezes, deve-se proteger as maiorias contra elas mesmas e, muitas vezes, compete ao Poder Judicial o desagradável papel de restringir a vontade popular em nome da proteção do equilíbrio de forças democráticas, contra o esmagamento de minorias ou de pautas axiológicas que transcendem o critério quantitativo do número de votos em uma eleição ou um plebiscito. São exemplos disso as decisões que abominam a pena de morte, o banimento ou a degradação moral dos presos. No Brasil, em relação a esses três aspectos, convém lembrar, o próprio constituinte privou o Constituinte Derivado de sobre eles deliberar, quando redigiu o artigo 60, § 4o, CF/1988. Essa pré-exclusão da capacidade legiferativa, chamada classicamente de “técnica das cláusulas pétreas”, é o melhor exemplo dessa postura defensiva contra as deliberações majoritárias.
No caso, houve o processo legislativo e seu resultado foi a Lei Complementar no 135/10, norma que dispõe de inegável e significativa legitimidade popular.
A despeito dessas considerações, existe a necessidade de atuação do Supremo Tribunal Federal no deslinde da incerta (ou certa) compatibilidade da legislação com as prescrições que lhe são superiores.
É também oportuno lembrar que leis restritivas do acesso ao que os romanos chamavam de ius honorum, o direito de disputar as honras das magistraturas, o equivalente moderno ao direito de ser votado, são também cerceadoras da ampla participação democrática no processo eleitoral. No passado, foram restrições censitárias, culturais, raciais e religiosas. A História humana, mesmo recentemente, apresenta diversos – e nada edificantes – exemplos de restrições ao direito de voto (e ao direito de ser votado, por consequência) destinadas a pobres, a indivíduos de etnias diferentes daquela apresentada pela classe dominante, a filiados a partidos políticos de ideologias não conformistas e até a pessoas que se declaram fiéis de certas denominações religiosas.
Esses embaraços ao direito à elegibilidade devem ser compreendidos nessa perspectiva histórica. Especialmente quando razões de natureza moral podem ser invocadas, no futuro, como no passado, para fins de exclusão política de segmentos incômodos ao regime. A participação de diversos brasileiros na vida pública foi obstada após o movimento militar de 1964 em nome de infamantes acusações de corrupção. O fundador desta capital federal, Juscelino Kubitschek de Oliveira, é apenas a face mais visível do uso do argumento moral (quase sempre incontestável) para exautorar expoentes políticos do processo eleitoral.
Dir-se-á que são argumentos para outras épocas, nas quais não havia independência judicial. Entendo que não. Esta Corte julga teses e não pessoas. Julga para o presente, mas suas decisões têm impacto para além de nossa permanência nestas cadeiras e do direito de ostentar a toga de juiz constitucional. Nossos julgamentos têm compromisso com o julgamento da História e esse, na maior parte das vezes, não é o mesmo das manchetes dos jornais do dia. Em 1o de abril de 1964, esses periódicos, em sua quase totalidade, cerraram fileiras em prol do novo regime, cuja apreciação pelo povo brasileiro só muito recentemente firmou-se de maneira adequada à pauta de valores humanísticos e universais.
O uso pelo regime autoritário de 1964 da improbidade e da moralidade administrativas como forma abusiva de restrição de direitos fundamentais dos cidadãos-candidatos foi denunciada no sólido voto condutor do Ministro Celso de Mello, na ADPF 144. Como recordou Sua Excelência, o artigo 151, incisos II e IV, CF/1967, autorizava que lei complementar estabelecesse casos de inelegibilidade visando à preservação da probidade administrativa e “a moralidade para o exercício do mandato, levada em consideração a vida pregressa do candidato”, o que foi conservado pela Emenda Constitucional no 8/1977, com ligeira alteração.
Nesse quadro constitucional de então, a Lei Complementar no 5/1970 deu concretude às citadas normas magnas, ao estabelecer como causa de inelegibilidade a mera instauração de processo judicial contra qualquer potencial candidato que houvesse supostamente praticado infração criminal.
Veja-se que o problema atualmente submetido ao crivo deste Pretório Excelso não é novo e os fundamentos moralizantes, típicos de épocas de “salvação nacional”, estão de volta ao cenário político-jurídico da Nação. Ao menos por esse importante aspecto, julgo não ser ocioso avivar a memória coletiva sobre a correlação histórica e os riscos do discurso moralizante, quando ele chega ao extremo de desrespeitar o núcleo essencial de direitos fundamentais, ainda que de indivíduos pelos quais não se exprime uma opinião das mais favoráveis.
Entendo que as mazelas existentes no sistema político representativo, de domínio coletivo, não são reparáveis por meios que levam ao amesquinhamento de garantias constitucionais há muito conquistadas, e cuja imanência ou imbricação no seio social, no atual estágio de desenvolvimento da cultura jurídica, fazem-nos esquecer de sua importância. As pedras de toque do sistema constitucional, tais quais o núcleo essencial dos direitos fundamentais, intangíveis, são objeto, por vezes, de tentativa de quebra. Pequenas fissuras, em certos casos, resultam em fraturas graves a estrutura do edifício normativo, e podem levar a sua ruína. O papel da Corte, às vezes desgostoso, mas necessário, é de combater abusos perpetrados pelo Poder Público, ainda quando veiculados pelo poder legiferante.
Feita essa ponderação, que considero relevante, passo ao exame das ações em suas bases estritamente jurídicas.
B) DA ELEGIBILIDADE COMO DIREITO SUBJETIVO DO CIDADÃO-CANDIDATO
O exercício e o gozo dos direitos políticos perfazem uma das facetas mais importantes dos direitos fundamentais do cidadão. Remonta uma conquista histórica por séculos batalhada, e que se traduz, em suma, na possibilidade do indivíduo influir no destino do Estado e opinar, em uma conjuntura coletiva, na fixação dos fins e das regras aplicáveis a sua comunidade, histórica e espacialmente contextualizada.
Nos debates que antecederam o presente julgamento, muito se afirmou, e com razão, sobre o viés transindividual da elegibilidade (inelegibilidade), matiz da capacidade eleitoral passiva, que redunda na postulação de acesso aos cargos de representação política e de gestão governamental.
A preponderância do argumento não é de se estranhar, já que velou a Constituição Federal, embora por intermédio do legislador complementar, pela proteção dos valores da moralidade, da probidade administrativa e do livramento do processo eleitoral de investidas perniciosas do poder econômico e do abusivo exercício de função pública.
Entretanto, a prevalência usual e saudável do interesse coletivo sobre o individual não pode resultar na nulificação do segundo, sob pena de esvaziamento da cláusula, tampouco pode configurar limitação desmedida quando o direito individual também for revestido de fundamentalidade constitucional.
Uma das salvaguardas a que, possivelmente, desatende a lei é o postulado da presunção da inocência ou cláusula de não-culpabilidade. Isso porque, em várias hipóteses de inelegibilidade, acresceu-se à previsão abstrata original, ao lado do requisito de trânsito em julgado da decisão condenatória, a expressão “ou proferida por órgão judicial colegiado”.
Nesse prisma, criou-se óbice à candidatura do cidadão, quando condenado por ilícito penal ou eleitoral ou de improbidade administrativa, sem que haja pronunciamento definitivo do Poder Judiciário em relação ao caso.
Como ressaltei, essa circunstância não é nova no âmbito da Corte. Já na década de 1970, o STF deparou-se com o problema de aplicação da regra contida no art. 1o, inciso I, alínea “n”, da antiga Lei de Inelegibilidades, Lei Complementar no 5/1970, segundo a qual eram inelegíveis “os que tenham sido condenados ou respondam a processo judicial, instaurado por denúncia do Ministério Público recebida pela autoridade judiciária competente, por crime contra a segurança nacional e a ordem política e social, a economia popular, a fé pública e a administração pública, o patrimônio ou pelo direito previsto no art. 22 desta Lei Complementar, enquanto não absolvidos ou penalmente reabilitados”.
Embora nos RREE n. 86.297 e 86.583, ambos de relatoria do Ministro Thompson Flores, o posicionamento adotado fosse o da conformidade do dispositivo com o regime constitucional então vigente, ficou vencida a tese defendida inicialmente pelo Ministro Xavier de Albuquerque, e posteriormente encampada pelo Ministro Leitão de Abreu em seu voto, externando a preocupação da quebra da moralidade do candidato pelo simples oferecimento de denúncia crime, a fim de que se criasse impedimento ao exercício do direito de candidatura. Confira-se:
“Embora inegável a feição problemática do tema, tenho que milita, entre outros, em favor da solução adotada pelo Tribunal Eleitoral, argumento que, a meu juízo, só por si, torna inabalável a solidez jurídica da decisão que proclamou a inconstitucionalidade da alínea n. Consiste ele na injustiça, na grave e irreparável injustiça, que resultara na negativa de registro de candidato fundada apenas em recebimento de denúncia, se vier esse candidato, após a eleição, a ser absolvido, seja por falta ou insuficiência de prova, seja por negativa do fato, seja por negativa da autoria do delito, que lhe foi imputado . Ter-se-á, então, que o candidato era limpo de labéu que o contra-indicasse pare o exercício do cargo, e, não obstante, pelo estigma que se quis terminante e inafastável, da denúncia, viu frustrado o seu direito de concorrer ao cargo eletivo que pretendia disputar, em igualdade de condições com os demais pretendentes a esse lugar, em prélio eleitoral. O seu modo de ser-no-mundo, para falar a linguagem heideggeriana , era a de homem digno, com acessibilidade garantida, pela ordem jurídica, a posição que disputava, porém teve repelida, in limine, a sua pretensão, como se fora ilegítima, em razão de juízo provisório, interino, problemático, que terminou por se declarar, por juízo seguro, pronunciado com base no exame minucioso da prova, como juridicamente inatacável” (RE no 86.297, RTJ 79/696)
Nesse passo, haja vista o relevo do caso ora colocado em apreciação, tenho que seu julgamento também deve ser pautado pela faceta subjetiva da figura da elegibilidade, a despeito da notória importância ética da lei cuja constitucionalidade se pretende confirmar.
C) DO PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA
No presente caso, há que se perquirir sobre a existência ou não de violação ao princípio constitucional da presunção de inocência, sediado materialmente no artigo 5o, LVII, CF/1988, cuja redação é clássica nas Constituições brasileiras: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
A presunção de inocência é historicamente ligada à condição de réu em processo criminal. Sua origem conecta-se aos brocardos latinos “na dúvida deve o juiz absolver o acusado” (in dubiis reus este absolvendus); “na dúvida, absolve” (in dubiis, abstine) e “na dúvida, sempre devem ser preferidas soluções mais benignas” (semper in dubiis benigniora praeferenda sunt, Gaius, D. 50.17.56).
Sua    reprodução    em    documentos    jurídicos    modernos    e contemporâneos é praticamente universal. O artigo 9o da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 já proclamava que “todo o acusado presume-se inocente até ser declarado culpado e, se for indispensável prendê-lo, todo o rigor não necessário à guarda da sua pessoa deverá ser severamente reprimido pela Lei.” (“Tout homme étant présumé innocent jusqu'à ce qu'il ait été déclaré coupable, s'il est jugé indispensable de l'arrêter, toute rigueur qui ne serait pas nécessaire pour s'assurer de sa personne doit être sévèrement réprimée par la loi.”) Da mesma forma, a Declaração Universal de Direitos Humanos, aprovada pela Assembleia da Organização das Nações Unidas (ONU), em 10/12/1948, em seu art. 11.1, também proclama que “toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não se prova sua culpabilidade, de acordo com a lei e em processo público no qual se assegurem todas as garantias necessárias para sua defesa”.
Como bem explicita o constitucionalista chileno Humberto Nogueira Alcalá (Consideraciones sobre el derecho fundamental a la presunción de inocencia. Ius et Práxis, v.11, n.1, Talca 2005), “o direito à presunção de inocência constitui um estado jurídico de uma pessoa que se encontra imputada, devendo orientar a atuação do tribunal competente, independente e imparcial, preestabelecido por lei, enquanto tal presunção não se perca ou destrua pela formação da convicção do órgão jurisdicional através da prova objetiva sobre a participação culposa do imputado ou acusado nos fatos constitutivos do delito, seja como autor, cúmplice ou acobertador, condenando-o por esse (delito) através de uma sentença firmemente fundada, congruente e ajustada às fontes do direito vigentes.”
A presunção de inocência nas construções pretorianas do STF está fortemente ligada ao problema da aferição do trânsito em julgado da condenação como elemento prévio à formação do juízo de culpabilidade e à perda do status jurídico assegurado aos que não sofreram tais cominações definitivas.
Desse modo, a Corte afirma que “a existência de inquérito e de ações penais em andamento não caracteriza a existência de maus antecedentes, pena de violação do princípio da presunção de inocência.” (HC 96618, Relator Ministro Eros Grau, Segunda Turma, DJe-116 25/6/2010).
Identicamente, “o princípio constitucional da presunção de inocência, em nosso sistema jurídico, consagra, além de outras relevantes conseqüências, uma regra de tratamento que impede o Poder Público de agir e de se comportar, em relação ao suspeito, ao indiciado, ao denunciado ou ao réu, como se estes já houvessem sido condenados, definitivamente, por sentença do Poder Judiciário. Precedentes.” (HC 95.886, Relator Ministro Celso de Mello, Segunda Turma, DJe-228 4/12/2009).
Em termos de Direito Comparado, veja-se que o Tribunal Constitucional de Espanha desenvolveu fortemente sua jurisprudência no sentido de que o conteúdo essencial do direito fundamental à presunção de inocência radica-se na situação jurídica de um indivíduo “até o momento em que uma sentença, pronunciada por um tribunal legal e independente no âmbito de um processo no qual se conservam todas as garantias constitucionais, condena o processado em relação a um ou vários delitos concretos.” (PÉREZ-PEDRERO, Enrique Belda. La presunción de inocencia. Parlamento y Constitución. Anuario, no 5, 2001, p.179-204. p. 180).
Em sede doutrinária, chega-se ao limite de associar esse princípio com a questão do tratamento respeitoso, digno, humanitário ao indivíduo que se encontra submetido às forças policiais, como se lê no excerto da obra clássica sobre o tema de Antônio Magalhães Gomes Filho (Presunção de inocência e prisão cautelar. São Paulo: Saraiva, 1991. p. 45):
“Sob outro aspecto, o princípio da presunção de inocência, visto como garantia do status do cidadão impõe às autoridades e ao pessoal administrativo em geral, que intervêm nas atividades processuais, tratamento respeitoso à pessoa do acusado, o que não se revela apenas no plano formal e abstrato, mas sobretudo nas pequenas práticas em que seja possível sua assimilação com a condição de culpado; assim, o uso de algemas deve ser restrito aos casos de absoluta necessidade, do mesmo modo que certas praxes, como a de realizar o interrogatório com o réu em pé, merecem ser revistas, em face da regra constitucional.”
Em suma, o debate sobre presunção de inocência é fortemente marcado pela possibilidade de se aplicar aos simples acusados as medidas sancionadoras típicas dos que se encontram em estado de condenação irrecorrível. Como referência, confira-se na doutrina internacional: Louis Favoreu (La constitutionnalisation du droit pénal et de la procédure pénale, vers un droit constitutionnel penal. In. Droit penal contemporain. Mélanges en l’honneur d’André Vitu. Paris: Cujas, 1989. p.169-209); Luigi Ferrajoli (Derecho y razón: teoria del garantismo penal. Trad. Perfecto Andrés Ibáñez. 4 ed. Madrid: Trotta, 2000. p.555- 559); Alexandra Vilela (Considerações acerca da presunção de inocência em direito processual penal. Coimbra: Coimbra Editora, 2000, p. 105) e Américo A. Taipa Carvalho (Sucessão de leis penais. 2. ed. Coimbra: Coimbra, 1997. p. 315).
E, se for transposto esse princípio para o campo administrativo- disciplinar, tem-se de admitir que é necessária a existência de um juízo condenatório ou, em casos extremos, a instauração de um procedimento sancionador para que se ponha em causa a aplicabilidade ou não desse princípio. Dito de outro modo, até para se discutir o alcance da presunção de inocência, é necessária a existência de alguma forma de constrição procedimental contra o arguido.
Nesse aspecto, como teve a oportunidade de decidir o Tribunal Constitucional de Espanha, a sanção proveniente dos órgãos públicos, seja de caráter judicial, seja de caráter administrativo, aplicada em decorrência de sentença ou ato administrativo equivalente, “(...) não pode suscitar nenhuma dúvida de que a presunção de inocência rege, sem exceções, o ordenamento sancionador e já de ser respeitada na imposição de quaisquer sanções, sejam penais, sejam administrativas (...)” (8a Sala do Tribunal Constitucional 76/90, caso Ley General Tributaria).
No acórdão-paradigma para as questões eleitorais relativas à inelegibilidade e ao poder legiferativo, firmado na ADPF 144, relator Ministro Celso de Mello (Dje de 26/2/10), tem-se claramente a associação do primado da presunção de inocência ao caso da condenação do candidato sem trânsito em julgado. Transcrevo passagem da ementa, que é autoexplicativa:
“REGISTRO DE CANDIDATO CONTRA QUEM FORAM INSTAURADOS PROCEDIMENTOS JUDICIAIS, NOTADAMENTE AQUELES DE NATUREZA CRIMINAL, EM CUJO ÂMBITO AINDA NÃO EXISTA SENTENÇA CONDENATÓRIA COM TRÂNSITO EM JULGADO - IMPOSSIBILIDADE CONSTITUCIONAL DE DEFINIR-SE, COMO    CAUSA    DE    INELEGIBILIDADE,    A    MERA INSTAURAÇÃO,    CONTRA    O    CANDIDATO,    DE PROCEDIMENTOS JUDICIAIS, QUANDO INOCORRENTE CONDENAÇÃO CRIMINAL TRANSITADA EM JULGADO - PROBIDADE ADMINISTRATIVA, MORALIDADE PARA O    EXERCÍCIO    DO    MANDATO    ELETIVO,    'VITA ANTEACTA' E PRESUNÇÃO CONSTITUCIONAL DE INOCÊNCIA - SUSPENSÃO DE DIREITOS POLÍTICOS E IMPRESCINDIBILIDADE,    PARA    ESSE    EFEITO,    DO TRÂNSITO EM JULGADO DA CONDENAÇÃO CRIMINAL
(CF, ART. 15, III) - REAÇÃO, NO PONTO, DA CONSTITUIÇÃO DEMOCRÁTICA DE 1988 À ORDEM AUTORITÁRIA QUE PREVALECEU SOB O REGIME MILITAR -    CARÁTER    AUTOCRÁTICO    DA    CLÁUSULA    DE INELEGIBILIDADE FUNDADA NA LEI COMPLEMENTAR No 5/70 (ART. 1o, I, 'N'), QUE TORNAVA INELEGÍVEL QUALQUER RÉU CONTRA QUEM FOSSE RECEBIDA DENÚNCIA POR SUPOSTA PRÁTICA DE DETERMINADOS ILÍCITOS PENAIS - DERROGAÇÃO DESSA CLÁUSULA PELO PRÓPRIO REGIME MILITAR (LEI COMPLEMENTAR No 42/82), QUE PASSOU A EXIGIR, PARA FINS DE INELEGIBILIDADE DO CANDIDATO, A EXISTÊNCIA, CONTRA    ELE,    DE    CONDENAÇÃO    PENAL    POR DETERMINADOS    DELITOS    -    ENTENDIMENTO    DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL SOBRE O ALCANCE DA LC No    42/82:    NECESSIDADE    DE    QUE    SE    ACHASSE CONFIGURADO    O    TRÂNSITO    EM    JULGADO    DA CONDENAÇÃO (RE 99.069/BA, REL. MIN. OSCAR CORRÊA) - PRESUNÇÃO CONSTITUCIONAL DE INOCÊNCIA: UM DIREITO FUNDAMENTAL QUE ASSISTE A QUALQUER PESSOA - EVOLUÇÃO HISTÓRICA E REGIME JURÍDICO DO PRINCÍPIO DO ESTADO DE INOCÊNCIA - O TRATAMENTO DISPENSADO À PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA PELAS DECLARAÇÕES INTERNACIONAIS DE DIREITOS E LIBERDADES FUNDAMENTAIS, TANTO AS DE CARÁTER REGIONAL QUANTO AS DE NATUREZA GLOBAL - O PROCESSO PENAL COMO DOMÍNIO MAIS EXPRESSIVO DE INCIDÊNCIA DA PRESUNÇÃO CONSTITUCIONAL DE    INOCÊNCIA    -    EFICÁCIA    IRRADIANTE    DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA - POSSIBILIDADE DE EXTENSÃO    DESSE    PRINCÍPIO    AO    ÂMBITO    DO PROCESSO    ELEITORAL    -    HIPÓTESES    DE INELEGIBILIDADE    -    ENUMERAÇÃO    EM    ÂMBITO CONSTITUCIONAL (CF, ART. 14, §§ 4o A 8o) - RECONHECIMENTO, NO ENTANTO, DA FACULDADE DE O CONGRESSO NACIONAL, EM SEDE LEGAL, DEFINIR
'OUTROS CASOS DE INELEGIBILIDADE' - NECESSÁRIA OBSERVÂNCIA, EM TAL SITUAÇÃO, DA RESERVA CONSTITUCIONAL DE LEI COMPLEMENTAR (CF, ART. 14, § 9o)    -    IMPOSSIBILIDADE,    CONTUDO,    DE    A    LEI COMPLEMENTAR, MESMO COM APOIO NO § 9o DO ART. 14 DA CONSTITUIÇÃO, TRANSGREDIR A PRESUNÇÃO CONSTITUCIONAL DE INOCÊNCIA, QUE SE QUALIFICA COMO    VALOR    FUNDAMENTAL,    VERDADEIRO 'CORNERSTONE' EM QUE SE ESTRUTURA O SISTEMA QUE A NOSSA CARTA POLÍTICA CONSAGRA EM RESPEITO AO REGIME DAS LIBERDADES E EM DEFESA DA    PRÓPRIA    PRESERVAÇÃO    DA    ORDEM DEMOCRÁTICA    -    PRIVAÇÃO    DA    CAPACIDADE ELEITORAL PASSIVA E PROCESSOS, DE NATUREZA CIVIL,    POR    IMPROBIDADE    ADMINISTRATIVA    - NECESSIDADE,    TAMBÉM    EM    TAL    HIPÓTESE,    DE CONDENAÇÃO IRRECORRÍVEL - COMPATIBILIDADE DA LEI No 8.429/92 (ART. 20, 'CAPUT') COM A CONSTITUIÇÃO FEDERAL (ART. 15, V, C/C O ART. 37, § 4o) - O SIGNIFICADO POLÍTICO E O VALOR JURÍDICO DA EXIGÊNCIA DA COISA JULGADA - RELEITURA, PELO TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL, DA SÚMULA 01/TSE, COM O OBJETIVO DE INIBIR    O    AFASTAMENTO    INDISCRIMINADO    DA CLÁUSULA DE INELEGIBILIDADE FUNDADA NA LC 64/90 (ART. 1o, I, 'G') - NOVA INTERPRETAÇÃO QUE REFORÇA A EXIGÊNCIA    ÉTICO-JURÍDICA    DE    PROBIDADE ADMINISTRATIVA E DE MORALIDADE PARA O EXERCÍCIO DE    MANDATO    ELETIVO    -    ARGÜIÇÃO    DE DESCUMPRIMENTO    DE    PRECEITO    FUNDAMENTAL JULGADA IMPROCEDENTE, EM DECISÃO REVESTIDA DE EFEITO VINCULANTE.”
Na forma exposta, o princípio da presunção de inocência tem encargo de pressuposto negativo, que refuta a incidência dos efeitos próprios de ato sancionador, administrativo ou judicial, antes do perfazimento ou conclusão do processo respectivo, com vistas à apuração
profunda dos fatos levantados e a realização de juízo certo sobre a ocorrência e autoria do ilícito imputado ao acusado. É corolário do postulado do devido processo legal formal, já que a aplicação de sanção, a privação de bens e a perda de status jurídicos devem ser antecedidas de legítimo, regular e dialético processo, que, em regra, se encerra com a prolação de juízos definitivos.
As razões contidas no voto proferido pelo eminente Ministro Celso de Mello, na ADPF 144, convencem-me da necessidade de aplicação do princípio da presunção de inocência às causas de inelegibilidade previstas na legislação infraconstitucional, como passo a expor a seguir.
D) A PROJEÇÃO DO PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA NAS CAUSAS DE INELEGIBILIDADES FUNDADAS EM SITUAÇÕES JUDICIAIS PRECÁRIAS
Feitas as colocações teóricas necessárias, passo ao exame das alterações promovidas pela LC no 135/10, agora, de maneira específica, sobre as alíneas em que se fez incluir a expressão “ou proferida por órgão colegiado”. São elas:
“Art. 1o São inelegíveis: I - para qualquer cargo: (...) d) os que tenham contra sua pessoa representação julgada
procedente pela Justiça Eleitoral, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão colegiado, em processo de apuração de abuso do poder econômico ou político, para a eleição na qual concorrem ou tenham sido diplomados, bem como para as que se realizarem nos 8 (oito) anos seguintes;
e) os que forem condenados, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, desde a condenação até o transcurso do prazo de 8 (oito) anos após o cumprimento da pena, pelos crimes:
1. contra a economia popular, a fé pública, a administração pública e o patrimônio público;
2. contra o patrimônio privado, o sistema financeiro, o mercado de capitais e os previstos na lei que regula a falência;
3. contra o meio ambiente e a saúde pública;
4. eleitorais, para os quais a lei comine pena privativa de liberdade;
5. de abuso de autoridade, nos casos em que houver condenação à perda do cargo ou à inabilitação para o exercício de função pública;
6. de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores;
7. de tráfico de entorpecentes e drogas afins, racismo, tortura, terrorismo e hediondos;
8. de redução à condição análoga à de escravo; 9. contra a vida e a dignidade sexual; e 10. praticados por organização criminosa, quadrilha ou
bando; (...)
h) os detentores de cargo na administração pública direta, indireta ou fundacional, que beneficiarem a si ou a terceiros, pelo abuso do poder econômico ou político, que forem condenados em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, para a eleição na qual concorrem ou tenham sido diplomados, bem como para as que se realizarem nos 8 (oito) anos seguintes;
(...)
j) os que forem condenados, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão colegiado da Justiça Eleitoral, por corrupção eleitoral, por captação ilícita de sufrágio, por doação, captação ou gastos ilícitos de recursos de campanha ou por conduta vedada aos agentes públicos em campanhas eleitorais que impliquem cassação do registro ou do diploma, pelo prazo de 8 (oito) anos a contar da eleição;
(...)
l) os que forem condenados à suspensão dos direitos políticos, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, por ato doloso de improbidade administrativa que importe lesão ao patrimônio público e enriquecimento ilícito, desde a condenação ou o trânsito em julgado até o transcurso do prazo de 8 (oito) anos após o cumprimento da pena;
(...)
p) a pessoa física e os dirigentes de pessoas jurídicas responsáveis por doações eleitorais tidas por ilegais por decisão transitada em julgado ou proferida por órgão colegiado da Justiça Eleitoral, pelo prazo de 8 (oito) anos após a decisão, observando-se o procedimento previsto no art. 22;”
Aqui residem, no meu sentir, situações de afronta ao princípio da presunção de inocência. Tratam-se de hipóteses proibitivas diversas em que se veda a participação no pleito eleitoral daqueles que foram condenados pela suposta prática de ilícitos criminais, eleitorais ou administrativos, por órgãos judicantes colegiados, mesmo antes da atestação da definitividade do julgado. Como a apuração da ocorrência do crime, do abuso do poder econômico ou político, da improbidade administrativa, e das outras ilegalidades eleitorais depende de regular processo em trânsito na Justiça Eleitoral ou em outras esferas jurisdicionais, parece-me questionável o impedimento à candidatura antes do julgamento definitivo da questão obstativa.
Sobre a incidência do princípio, advertiu o Ministro Celso de Mello no julgamento da ADPF no 144, que este gera um estado de “verdade provisória” que inibe a produção de juízos antecipados de culpabilidade, ainda que nas instâncias judiciais superiores, definido como termo da presunção o trânsito em julgado, a partir do qual finda a garantia. Vide:
“O postulado do estado de inocência, ainda que não se considere como presunção em sentido técnico, encerra, em favor de qualquer pessoa sob persecução penal, o reconhecimento de uma verdade provisória, com caráter probatório, que repele suposições ou juízos prematuros de culpabilidade, até que sobrevenha – como o exige a Constituição do Brasil – o trânsito em julgado da condenação penal. Só então deixará de subsistir, em favor da pessoa condenada, a presunção de que é inocente. Há, portanto, um momento claramente definido no texto
constitucional, a partir do qual se descaracteriza a presunção de inocência, vale dizer, aquele instante em que sobrevém o trânsito em julgado da condenação criminal. Antes desse momento – insista-se -, o Estado não pode tratar os indiciados ou réus como se culpados fossem. A presunção de inocência impõe, desse modo, ao Poder Público, um dever de tratamento que não pode ser desrespeitado por seus agentes e autoridades.
Mostra-se importante acentuar que a presunção de inocência não se esvazia progressivamente, à medida em que se sucedem os graus de jurisdição, a significar que, mesmo confirmada a condenação penal por um Tribunal de segunda instância, ainda assim subsistirá, em favor do sentenciado, esse direito fundamental, que só deixa de prevalecer – repita-se – com o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, como claramente estabelece, em texto inequívoco, a Constituição da República.
(...)
Disso resulta, segundo entendo, que a consagração constitucional da presunção de inocência como direito fundamental de qualquer pessoa há de viabilizar, sob a perspectiva da liberdade, uma hermenêutica essencialmente emancipatória dos direitos básicos da pessoa humana, cuja prerrogativa de ser sempre considerada inocente, para todos e quaisquer efeitos, deve atuar, até o superveniente trânsito em julgado da condenação judicial, como uma cláusula de insuperável bloqueio à imposição prematura de quaisquer medidas que afetem ou que restrinjam, seja no domínio civil, seja no âmbito político, a esfera jurídica das pessoas em geral” (DJe de 26/02/10).
Continua o ilustre Ministro, afirmando que a garantia do estado de inocência não se resume ao campo estritamente penal. Ao contrário, referida cláusula constituiria limite a qualquer intervenção estatal prévia, direcionada à privação de bens ou direitos ou a aplicação de regras de caráter sancionador, seja qual for o ramo do direito presente. É de se observar novamente:
“Nem se diga que a garantia fundamental de presunção da inocência teria pertinência e aplicabilidade unicamente restritas ao campo do direito penal e processual penal.
Torna-se importante assinalar, neste ponto, Senhor Presidente,    que    a    presunção    de    inocência,    embora historicamente vinculada ao processo penal, também irradia os seus efeitos, sempre em favor das pessoas, contra o abuso de poder e a prepotência do Estado, projetando-os para esferas processuais não-criminais, em ordem a impedir, dentre outras graves conseqüências no plano jurídico – ressalvada a excepcionalidade    de    hipóteses    previstas    na    própria Constituição -, que se formulem, precipitadamente, contra qualquer cidadão, juízos morais fundados em situações juridicamente ainda não definidas (e, por isso mesmo, essencialmente instáveis) ou, então, que se imponham, ao réu, restrições a seus direitos, não obstante inexistente condenação judicial transitada em julgado.
(...)
O que se mostra relevante, a propósito do efeito irradiante da presunção de inocência, que a torna aplicável a processos de natureza não-criminal, como resulta dos julgamentos ora mencionados, é a preocupação, externada por órgãos investidos de jurisdição constitucional, com a preservação da integridade de um princípio que não pode ser transgredido por atos estatais que veiculem, prematuramente, medidas gravosas à esfera jurídica das pessoas, que são, desde logo, indevidamente tratadas, pelo Poder Público, como se culpadas fossem, porque presumida, por arbitrária antecipação fundada em juízo de mera suspeita, a culpabilidade de quem figura, em processo penal ou civil, como simples réu!”
Justamente daí surge a incompatibilidade das expressões “ou proferida por órgão colegiado” e “ou proferida por órgão colegiado da Justiça Eleitoral” com a Constituição Federal, por autorizarem a aplicação da regra de inelegibilidade de maneira antecipada, sem a convicção da certeza de cometimento pelo candidato dos ilícitos penais, eleitorais ou administrativos elencados na legislação.
Sem falar que, enquanto pendentes de julgamento de eventual decisão contra a “decisão colegiada”, qual seria o termo a quo e o termo ad quem da inelegibilidade? Essa imprecisão ofende o próprio postulado da segurança jurídica, gerando incertezas acerca da aplicação do prazo, podendo acarretar, ainda, ofensa ao postulado da isonomia.
Vale salientar o temor que se instala em razão dessas previsões, mediante as quais se priva o postulante ao cargo eletivo da participação no pleito, diante da inegável falibilidade dos juízos provisórios.
A confrontação entre processo seguro e processo célere é recorrente no âmbito legislativo e na seara judicial. Tende-se modernamente ao privilégio do segundo aspecto, em razão da necessidade de efetividade da jurisdição e da impotência gerada pela prestação judicial tardia do bem da vida.
Tal linha diz respeito, com razão, às lides em que se debatem valores ou bens de natureza disponível, ou àquelas em que a tutela de urgência há de prevalecer para a satisfação de interesses altamente preponderantes como a vida, a integridade, e a sobrevivência.
Há outros casos, porém, em que o caráter da segurança jurídica tem de ser ressaltado, dentre eles, sobremaneira, o da aplicação de regras sancionadoras e da incidência de seus efeitos, para dentro e fora da relação processual de apuração.
Ainda que se admita, por exemplo, a prisão cautelar no seio do processo penal, o surtimento dos efeitos próprios da condenação demanda o trânsito em julgado da decisão. Destaca-se, nesse sentido, o julgamento proferido por esta Corte, no HC 84.078/MG, de relatoria do Ministro Eros Grau, ocasião em que a Corte decidiu pela inconstitucionalidade da chamada “execução antecipada da pena” antes do trânsito em julgado. Vide:
“HABEAS CORPUS. INCONSTITUCIONALIDADE DA CHAMADA "EXECUÇÃO ANTECIPADA DA PENA". ART. 5o, LVII, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. ART. 1o, III, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. 1. O art. 637 do CPP estabelece que "[o] recurso extraordinário não tem efeito suspensivo, e uma vez arrazoados pelo recorrido os autos do traslado, os originais baixarão à primeira instância para a execução da sentença". A Lei de Execução Penal condicionou a execução da pena privativa de liberdade ao trânsito em julgado da sentença condenatória. A Constituição do Brasil de 1988 definiu, em seu art. 5o, inciso LVII, que "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória". 2. Daí que os preceitos veiculados pela Lei n. 7.210/84, além de adequados à ordem constitucional vigente, sobrepõem-se, temporal e materialmente, ao disposto no art. 637 do CPP. 3. A prisão antes do trânsito em julgado da condenação somente pode ser decretada a título cautelar. 4. A ampla defesa, não se a pode visualizar de modo restrito. Engloba todas as fases processuais, inclusive as recursais de natureza extraordinária. Por isso a execução da sentença após o julgamento do recurso de apelação significa, também, restrição do direito de defesa, caracterizando desequilíbrio entre a pretensão estatal de aplicar a pena e o direito, do acusado, de elidir essa pretensão. 5. Prisão temporária, restrição dos efeitos da interposição de recursos em matéria penal e punição exemplar, sem qualquer contemplação, nos "crimes hediondos" exprimem muito bem o sentimento que EVANDRO LINS sintetizou na seguinte assertiva: "Na realidade, quem está desejando punir demais, no fundo, no fundo, está querendo fazer o mal, se equipara um pouco ao próprio delinqüente". 6. A antecipação da execução penal, ademais de incompatível com o texto da Constituição, apenas poderia ser justificada em nome da conveniência dos magistrados --- não do processo penal. A prestigiar-se o princípio constitucional, dizem, os tribunais [leia-se STJ e STF] serão inundados por recursos especiais e extraordinários e subseqüentes agravos e embargos, além do que "ninguém mais será preso". Eis o que poderia ser apontado como incitação à "jurisprudência defensiva", que, no extremo, reduz a amplitude ou mesmo amputa garantias constitucionais. A comodidade, a melhor operacionalidade de funcionamento do STF não pode ser lograda a esse preço. 7. No RE 482.006, relator o Ministro Lewandowski, quando foi debatida a constitucionalidade de preceito de lei estadual mineira que impõe a redução de vencimentos de servidores públicos afastados de suas funções por responderem a processo penal em razão da suposta prática de crime funcional [art. 2o da Lei n. 2.364/61, que deu nova redação à Lei n. 869/52], o STF afirmou, por unanimidade, que o preceito implica flagrante violação do disposto no inciso LVII do art. 5o da Constituição do Brasil. Isso porque --- disse o relator --- "a se admitir a redução da remuneração dos servidores em tais hipóteses, estar-se-ia validando verdadeira antecipação de pena, sem que esta tenha sido precedida do devido processo legal, e antes mesmo de qualquer condenação, nada importando que haja previsão de devolução das diferenças, em caso de absolvição". Daí porque a Corte decidiu, por unanimidade, sonoramente, no sentido do não recebimento do preceito da lei estadual pela Constituição de 1.988, afirmando de modo unânime a impossibilidade de antecipação de qualquer efeito afeto à propriedade anteriormente ao seu trânsito em julgado. A Corte que vigorosamente prestigia o disposto no preceito constitucional em nome da garantia da propriedade não a deve negar quando se trate da garantia da liberdade, mesmo porque a propriedade tem mais a ver com as elites; a ameaça às liberdades alcança de modo efetivo as classes subalternas. 8. Nas democracias mesmo os criminosos são sujeitos de direitos. Não perdem essa qualidade, para se transformarem em objetos processuais. São pessoas, inseridas entre aquelas beneficiadas pela afirmação constitucional da sua dignidade (art. 1o, III, da Constituição do Brasil). É inadmissível a sua exclusão social, sem que sejam consideradas, em quaisquer circunstâncias, as singularidades de cada infração penal, o que somente se pode apurar
plenamente quando transitada em julgado a condenação de cada qual. Ordem concedida.” (HC 84078/MG, Rel. Min. Eros Grau, DJ de 26/2/10).
No processo eleitoral deve ser de idêntica maneira.
Ora, se a pena criminal não pode ser executada provisoriamente, como poderá ela surtir efeitos eleitorais? A teor do texto expresso do art. 15, III, da Carta Política, o preso provisório não perde os seus direitos políticos, mas ficará inelegível?
A incidência das regras de inelegibilidades deve reclamar o caráter definitivo de julgamento das causas que lhe são antecedentes. O impedimento prematuro à candidatura cria instabilidade no campo da segurança jurídica, pois a causa da inelegibilidade despida de certeza pode provocar prejuízo irreversível ao direito de candidatura.
Supondo a ausência de tutela cautelar que assegurasse a participação no pleito ao candidato, como se sanaria eventual injustiça da sua ausência na eleição? Essa, por óbvio, não se repetirá (ou não se deveria repetir) a cada falha na apuração de eventual ilícito, cuja ocorrência for descartada por Corte de grau superior ao órgão colegiado prolator da decisão desabonadora. Onde se encontra a lógica ou a racionalidade de tal sistema? Se se afirmasse que a aplicação da regra de inelegibilidade é forma de tutela provisória, poder-se-ia avistar a reversibilidade do provimento? Passada a eleição, não há como o candidato impedido dela participar, nem ser indenizado pelo dano por outra forma. É situação similar do condenado à sanção capital, ao qual, uma vez executada a pena, não se pode devolver a vida.
Tampouco se diga que a fórmula inscrita no artigo 26-C da Lei Complementar no 64/90, incluído pela LC no 135/2010, constitui maneira constitucionalmente legítima de sanar eventuais irregularidades na aplicação das causas prematuras de inelegibilidades, in verbis:
“Art. 26-C. O órgão colegiado do tribunal ao qual couber a apreciação do recurso contra as decisões colegiadas a que se referem as alíneas d, e, h, j, l e n do inciso I do art. 1o poderá, em
caráter cautelar, suspender a inelegibilidade sempre que existir plausibilidade da pretensão recursal e desde que a providência tenha sido expressamente requerida, sob pena de preclusão, por ocasião da interposição do recurso.
§ 1o Conferido efeito suspensivo, o julgamento do recurso terá prioridade sobre todos os demais, à exceção dos de mandado de segurança e de habeas corpus.
§ 2o Mantida a condenação de que derivou a inelegibilidade ou revogada a suspensão liminar mencionada no caput, serão desconstituídos o registro ou o diploma eventualmente concedidos ao recorrente.
§ 3o A prática de atos manifestamente protelatórios por parte da defesa, ao longo da tramitação do recurso, acarretará a revogação do efeito suspensivo”.
Quatro são as ordens de incongruência que emanam do dispositivo.
A primeira é a criação de regra de inversão do postulado da presunção de inocência. Ao invés de se patentear a presumida não culpabilidade do candidato, a fim garantir-lhe a participação na eleição, até porvindouro trânsito em julgado de condenação que desabone sua moralidade e afete seu pregresso histórico de vida, a norma tece prescrição contrária, presumindo a culpabilidade e negando o acesso do cidadão ao pleito eleitoral, a não ser que obtenha provimento cautelar permissivo. Tal situação é um descalabro jurídico, com a devida vênia, já que, como antes ressaltado, a incidência da garantia tem fim no trânsito em julgado e na consequente definitividade da situação jurídica ensejadora da inelegibilidade.
O dispositivo também é marcado pela fragilização do princípio da presunção de inocência, diante da ausência de um critério objetivo que paute a concessão ou a negação de acesso do candidato ao pleito eleitoral. Não se nega a imensa validade garantista do juízo cautelar e da sensibilidade judicial aos casos da vida, quanto à aferição do risco da demora da prestação. Ocorre que a irrepetibilidade do momento histórico, como no caso das eleições, e da difícil ou incerta reparabilidade do dano da ausência, devem levar a um juízo em regra permissivo, sob pena de frustar absolutamente, ou fadar à ineficácia, o provimento jurisdicional de absolvição do acusado.
Por fim, no meu entender, a questão que mais me causa perplexidade no dispositivo ora em análise é que ele demonstra o quanto é injusto e inconstitucional a incidência de causa de inelegibilidade antes do trânsito em julgado da decisão judicial, uma vez que ressalta a fragilidade das decisões ainda precárias. Ora, se é necessária a concessão de espaço para o afastamento cautelar da inelegibilidade se plausível a pretensão recursal, é porque se admite a possibilidade de equívocos nas decisões proferidas pelos órgãos colegiados, o que inegavelmente trará prejuízo irreparáveis ao candidato.
Por outro lado, salta-me aos olhos, o fato de que essa previsão
confere aos juízes o poder de determinar, por critérios por demais subjetivos, quem continua ou sai da disputa eleitoral. Relega-se, por completo, a premência constitucional de que as hipóteses de inelegibilidades recaiam sobre situações objetivas, de forma a evitar critérios subjetivos e não isonômicos, que possam burlar inclusive a lisura do pleito eleitoral. Há aqui quebra da previsibilidade das condições subjetivo-políticas dos candidatos, deixando-se espaço para casuísmo,    surpresa,    imprevisibilidade    e    violação    da    simetria constitucional dos postulantes a cargos eletivos.
Por essas razões, Senhores Ministros, com as devidas vênias dos que entendem de forma diversa, meu voto é pela declaração de inconstitucionalidade das expressões “ou proferida por órgão colegiado” contidas nas alíneas “d”, “e”, “h” e “l” do art. 1o, bem como das expressões “ou proferida por órgão colegiado da Justiça Eleitoral” contidas nas alíneas “j” e “p” do art. 1o, por violação ao postulado da presunção de inocência.
Resta, ainda, configurada a inconstitucionalidade, na íntegra, do art. 26-C, seja por arrastamento, diante da inocuidade surgida com a invalidação da inelegibilidade por julgamento colegiado sem trânsito, seja diretamente por igual ofensa ao princípio da presunção de inocência e aos demais postulados antes citados.
E) DA PROJEÇÃO DO PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA NO CAMPO DOS PROCESSOS NÃO JUDICIAIS OU DISCIPLINARES
A Lei Complementar no 135/2010 também inovou na parte das inelegibilidades surgidas de condenações em processos não judiciais.
Tendo em mente que o postulado do devido processo legal abarca tanto relações processuais judiciais como administrativas, e que a presunção de inocência, por conseguinte, tem vez igualmente nesses últimos, há que se conferir interpretação conforme a Constituição a algumas previsões.
“m) os que forem excluídos do exercício da profissão, por decisão sancionatória do órgão profissional competente, em decorrência de infração ético-profissional, pelo prazo de 8 (oito) anos, salvo se o ato houver sido anulado ou suspenso pelo Poder Judiciário”
Essa alínea é objeto de impugnação específica na ADI no 4.578 ajuizada pela Confederação Nacional dos Profissionais Liberais, questionando-se, exatamente, a constitucionalidade da inelegibilidade decorrente da exclusão profissional, por decisão sancionatória do respectivo órgão de classe, em decorrência da infração ética-profissional.
Embora me cause preocupação a possibilidade desta cláusula ocasionar o uso político dos conselhos de classe nos respectivos julgamentos dos pares, trata-se de opção do legislador que não desabona, a meu ver, nenhum preceito constitucional, em especial porque nela consta a ressalva de não aplicação quando houver anulação ou suspensão pelo Poder Judiciário, o que, de certa forma, resguardará os profissionais de eventuais abusos cometidos.
Em verdade, trata-se de previsão que até se justifica, tendo em conta que se o cidadão não foi um bom profissional no desenvolvimento de suas atividades habituais, essa atuação desabonadora poderá ter reflexos no desempenho de eventual mandato eleitoral. Ademais, trata-se de previsão que se assemelha às hipóteses de
inelegibilidade decorrentes de perda de cargo ou função pública, mediante processo administrativo disciplinar, em decorrência de falta funcional grave. Inclusive essa decisão sancionatória incidirá sobre profissões regulamentadas de alta relevância social (art. 5o, XIII, CF) e será aplicada por entidades que possuem natureza autárquica. Lembrem- se que os conselhos de profissão, a teor do decidido na ADI 1717, de relatoria do Ministro Sydney Sanchez, ostentam caráter público, sendo- lhes reconhecida a natureza de autarquia e as prerrogativas inerentes a essa espécie de entidade da Administração Indireta.
Contudo, a tal preceito deve ser incorporado o entendimento de que a inelegibilidade só resulta de condenação definitiva no âmbito administrativo, em processo disciplinar promovido pelo Conselho de Classe. Dessa forma, é importante que fique claro, com base nas premissas já fixadas neste voto, que o prazo de inelegibilidade, inclusive, somente começa a contar a partir da decisão definitiva na seara administrativa.
“o) os que forem demitidos do serviço público em decorrência de processo administrativo ou judicial, pelo prazo de 8 (oito) anos, contado da decisão, salvo se o ato houver sido suspenso ou anulado pelo Poder Judiciário”;
As mesmas considerações acima são de valia nesta previsão. Deve ser ressaltado que a demissão do servidor público, em processo judicial ou administrativo, para criação da inelegibilidade, deve ser obra de condenação em caráter definitivo em cada âmbito.
“q) os magistrados e os membros do Ministério Público que forem aposentados compulsoriamente por decisão sancionatória, que tenham perdido o cargo por sentença ou que tenham pedido exoneração ou aposentadoria voluntária na pendência de processo administrativo disciplinar, pelo prazo de
8 (oito) anos”;
A situação dos magistrados e dos membros do Ministério Público, em razão da peculiaridade do gozo da vitaliciedade no cargo, reclama algumas considerações. A interpretação conforme desta regra demanda o esclarecimento de que a inelegibilidade resultante de aposentadoria compulsória, diante do seu caráter administrativo, deve pressupor condenação definitiva nessa seara. Quanto à sanção de demissão, resultante de ação judicial, o termo “sentença” deve ser interpretado como decisão judicial transitada em julgado, na forma do art. 95, I, da Lei Fundamental.
F) DA ALÍNEA “K”, RENÚNCIA A MANDATO ELETIVO, E DA PARTE    FINAL    DA    ALÍNEA    “Q”,    APOSENTADORIA    OU EXONERAÇÃO    VOLUNTÁRIAS    DOS    MAGISTRADOS    E MEMBROS DO MINISTÉRIO PÚBLICO NA PENDÊNCIA DE PROCESSO DISCIPLINAR
“k) o Presidente da República, o Governador de Estado e do Distrito Federal, o Prefeito, os membros do Congresso Nacional, das Assembleias Legislativas, da Câmara Legislativa, das Câmaras Municipais, que renunciarem a seus mandatos desde o oferecimento de representação ou petição capaz de autorizar a abertura de processo por infringência a dispositivo da Constituição Federal, da Constituição Estadual, da Lei Orgânica do Distrito Federal ou da Lei Orgânica do Município, para as eleições que se realizarem durante o período remanescente do mandato para o qual foram eleitos e nos 8 (oito) anos subsequentes ao término da legislatura;”
“q) os magistrados e os membros do Ministério Público que forem aposentados compulsoriamente por decisão sancionatória, que tenham perdido o cargo por sentença ou que tenham pedido exoneração ou aposentadoria voluntária na pendência de processo administrativo disciplinar, pelo prazo
de 8 (oito) anos;”
Ambas as previsões configuram hipóteses em que se furta o acusado ao crivo de procedimento de controle de responsabilidade política ou disciplinar, por ato eminentemente voluntário.
Como já ressaltei no RE no 631.102/PA, a imputação da inelegibilidade ao candidato que renunciou anteriormente a mandato eletivo não ofende, a meu ver, a cláusula constitucional da presunção de inocência, por se tratar de ato voluntário e unilateral do agente, que refoge da previsão de cláusula de garantia, instalada necessariamente em sede de processo judicial ou administrativo.
Não poderia se beneficiar eternamente da presunção, o cidadão que renuncia, já que fica prejudicado o procedimento de apuração de responsabilidade tendente à sua expulsão do quadro de agentes políticos.
Em suma, não há nessas hipóteses as situações descritas na ADPF 144 como típicas de observância do primado da presunção de inocência. Os atos de renúncia e exoneração voluntária constituem hipóteses de fato não subsumível ao âmbito de eficácia do artigo 5o, LVII, CF/1988.
Da mesma forma não se beneficiam os magistrados e os membros do Ministério Público que fulminam procedimento disciplinar, pela exoneração ou aposentadoria voluntária.
Não há, portanto, inconstitucionalidade nas referidas hipóteses.
G) DA ALÍNEA “G” E DA REJEIÇÃO DAS CONTAS PELOS RESPECTIVOS ÓRGÃOS DE CONTROLE
“g) os que tiverem suas contas relativas ao exercício de cargos ou funções públicas rejeitadas por irregularidade insanável que configure ato doloso de improbidade administrativa, e por decisão irrecorrível do órgão competente, salvo se esta houver sido suspensa ou anulada pelo Poder Judiciário, para as eleições que se realizarem nos 8 (oito) anos seguintes, contados a partir da data da decisão, aplicando-se o disposto no inciso II do art. 71 da Constituição Federal, a
todos os ordenadores de despesa, sem exclusão de mandatários que houverem agido nessa condição;”
Afigura-se constitucional a previsão contida na primeira parte alínea “g”, que trata da apreciação das contas pelos respectivos órgãos de controle, já que no dispositivo há menção expressa à definitividade do julgado administrativo.
Contudo, o mesmo não ocorre em relação à parte final do dispositivo. Em que pese a imprecisa redação do dispositivo, depreende- se que a pretensão foi submeter os Chefes do Poder Executivo (mandatários), quando da atuação como ordenadores de despesas, a julgamento dessas contas pelo Tribunal de Contas, aplicando-se a disposição contida no inciso II do art. 71 da Constituição Federal. Afasta- se, por consequência, a aplicação do inciso I do art. 71 da Carta Maior, de forma que os mandatários, nesse caso, não se submeteriam ao julgamento político pelo Poder Legislativo, mas apenas ao julgamento das contas efetuado pela Corte de Contas. Confiram-se os dispositivos constitucionais:
“Art. 71. O controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da União, ao qual compete:
I - apreciar as contas prestadas anualmente pelo Presidente da República, mediante parecer prévio que deverá ser elaborado em sessenta dias a contar de seu recebimento;
II - julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da administração direta e indireta, incluídas as fundações e sociedades instituídas e mantidas pelo Poder Público federal, e as contas daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário público;”
A jurisprudência deste Supremo Tribunal Federal reconhece a existência de competências autônomas e distintas do Tribunal de Contas e do Poder Legislativo dentre aquelas previstas no art. 71 da
Constituição. Nesse sentido, cito acórdão unânime proferido no julgamento da ADI no 3.715/TO-MC, da relatoria do Ministro Gilmar Mendes, DJ de 25/8/06, in verbis:
“(...) A Constituição Federal é clara ao determinar, em seu art. 75, que as normas constitucionais que conformam o modelo federal de organização do Tribunal de Contas da União são de observância compulsória pelas Constituições dos Estados- membros. Precedentes. 4. No âmbito das competências institucionais do Tribunal de Contas, o Supremo Tribunal Federal tem reconhecido a clara distinção entre: 1) a competência para apreciar e emitir parecer prévio sobre as contas prestadas anualmente pelo Chefe do Poder Executivo, especificada no art. 71, inciso I, CF/88; 2) e a competência para julgar as contas dos demais administradores e responsáveis, definida no art. 71, inciso II, CF/88. Precedentes. 5. Na segunda hipótese, o exercício da competência de julgamento pelo Tribunal de Contas não fica subordinado ao crivo posterior do Poder Legislativo. Precedentes. (...)” (grifou-se).
Ressalte-se, ainda, que essa questão já foi objeto de discussão neste Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE 132.747/DF, ocasião em que a Corte entendeu que os Chefes do Poder Executivo, ainda quando atuam como ordenadores de despesas, submetem-se aos termos do inciso I do art. 71 da Carta Federal, cabendo aos Tribunais de Contas a emissão de parecer prévio. Vide:
“RECURSO EXTRAORDINÁRIO - ACÓRDÃO DO TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL - FUNDAMENTO LEGAL E CONSTITUCIONAL. O fato de o provimento atacado mediante o extraordinário estar alicerçado em fundamentos estritamente legais e constitucionais não prejudica a apreciação do extraordinário. No campo interpretativo cumpre adotar posição que preserve a atividade precípua do Supremo Tribunal Federal - de guardião da Carta Política da República.
INELEGIBILIDADE - PREFEITO - REJEIÇÃO DE CONTAS - COMPETÊNCIA. Ao Poder Legislativo compete o julgamento das contas do Chefe do Executivo, considerados os três níveis - federal, estadual e municipal. O Tribunal de Contas exsurge como simples órgão auxiliar, atuando na esfera opinativa - inteligência dos artigos 11 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, 25, 31, 49, inciso IX, 71 e 75, todos do corpo permanente da Carta de 1988. Autos conclusos para confecção do acórdão em 9 de novembro de 1995.” (RE 132.747/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ de 7/12/95).
Dessa forma, entendo que a parte final da alínea “g” ora em discussão, ao determinar a aplicação do inciso II do art. 71 da Constituição aos mandatários (incluem-se aqui, por óbvio, os Chefes do Poder Executivo) quando atuarem na condição de ordenador de despesa e, portanto, subtraindo o julgamento político pelo Poder Legislativo previsto no inciso I do art. 71 da Carta Federa, afigura-se inconstitucional.
Por essa razão, entendo que deva ser conferida interpretação conforme à parte final da alínea “g”, ora em discussão, para esclarecer que os Chefes do Poder Executivo, ainda quando atuam como ordenadores de despesa, submetem-se aos termos do inciso I do art. 71 da Carta Federal.
H) DA ALÍNEA “N”: DESFAZIMENTO OU SIMULAÇÃO DE DESFAZIMENTO DE CASAMENTO OU DE UNIÃO ESTÁVEL, COM O FIM DE FRAUDAR A CARACTERIZAÇÃO DE INELEGIBILIDADE
É a redação da referida alínea:
“n) os que forem condenados, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, em razão de terem desfeito ou simulado desfazer vínculo conjugal ou de união estável para evitar caracterização de inelegibilidade, pelo prazo de 8 (oito) anos após a decisão que reconhecer a fraude”.
A doutrina clássica do Direito Civil, no que não é contrariada pelos novos termos do parágrafo sexto do artigo 226, CF/1988, após a Emenda Constitucional 65/10, entende que o casamento pode ser validamente dissolvido pelo divórcio ou ter sua validade desconstituída por declaração de nulidade ou de anulabilidade. Os requisitos e a natureza dos atos de dissolução e invalidação (distinguindo-se, neste caso, entre as duas espécies – nulidade e anulabilidade) são distintos e podem produzir consequências jurídicas variáveis em planos.
É de se reconhecer que o casamento, ao menos internamente, tem natureza jurídico-negocial. E, em assim sendo, submete-se à teoria dos planos do negócio jurídico, aproveitando-se de sua estrutura declarativa. A moderna doutrina do Direito Civil tem cuidado de que a nota essencial do matrimônio não é mais a legitimidade, rectius, sua constituição conforme as leis (legitimus como ex lege). Ter-se-ia o elemento (de baixíssima densidade conceptual) da afetividade, algo que é tão variável e complexo que pode haver até entre seres humanos e semoventes ou entre seres humanos e objetos, como a estima que se nutre por animais domésticos (ditos de estimação) ou joias, relíquias ou fotografias, cuja destruição causa impacto psicológico indiscutível.
Para o que interessa ao voto, e abstraindo essa discussão sobre a nota característica do matrimônio como um negócio jurídico distinto de outros com cariz tipicamente patrimonial, é de se ressaltar que a validade do casamento é conducente à produção de diversos efeitos (irradiação para o mundo dos fatos das causas de constituição jurídica). Enumerem-se alguns deles: a) criação dos vínculos conjugais, o que impede novo casamento sem prévia dissolução do primeiro; b) assunção dos encargos materiais familiares, como o dever de solidariedade no exercício do poder parental ou a obrigação de alimentos; c) o direito ao acréscimo ao nome patronímico de um cônjuge por outro; d) o exercício da faculdade de planejamento familiar; e) os deveres conjugais do artigo 1.566, CCB/2002; f) definição do domicílio conjugal; g) exercício conjunto do poder familiar.
Ocorre, porém, que há efeitos econômicos dessa causa jurídico- negocial, ao exemplo de uma situação jurídica que pode assumir forma preestabelecida ou de um negócio jurídico livremente pactuado sob a égide da autonomia privada, nos limites dos bons costumes e da ordem pública. Refere-se aqui ao regime de bens, que pode ser preestabelecido (regime legal) ou definido por um pacto antenupcial (regime convencional).
A extinção do matrimônio por dissolução libera os cônjuges da maior parte dos efeitos jurídicos assinalados, embora, ainda neste caso, persistam fatores eficaciais residuais, como a prestação de alimentos de subsistência, o exercício conjunto do poder familiar ou mesmo a continuidade do regime de bens, até que se ultime a partilha, dada a faculdade (discutida doutrinariamente) de se deixar para momento ulterior a divisão plena do acervo patrimonial.
A nulidade do matrimônio (ou sua anulabilidade, conforme o caso) liga-se a causas jurídicas típicas, pois há o princípio da preservação do casamento. São causas taxativas e discriminadas no Código Civil, no que se percebe a influência dos esquemas categoriais do negócio jurídico sobre o casamento. Referindo-se tão somente ao que nos importa, a invalidade é aquela afeta à vontade dos sujeitos e à observância de formas prescritas. E, mesmo que ela seja reconhecida, existem efeitos residuais do nulo, o que se dá, por exemplo, no reconhecimento do casamento putativo em relação aos filhos ou na preservação dos efeitos (em geral, patrimoniais) do casamento em face do cônjuge de boa-fé.
As causas de nulidade ou de anulabilidade são taxativas, sujeitam-se a prazos extremamente exíguos para a propositura de ações e se acomodam às duríssimas regras da caducidade, pois a essência das normas reitoras do casamento está em sua preservação. Nesse sentido, o Código Civil alude aos defeitos negociais do erro e da coação.
E a simulação? Ora, as causas de invalidade matrimonial são taxativas. Francisco Clementino de San Tiago Dantas (Direitos de Família e das Sucessões. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1991. p. 199-201), um dos maiores civilistas brasileiros do século XX, catedrático de Direito Civil da velha Faculdade Nacional de Direito, afirma textualmente que “o Direito prefere defender a família que se constitui a defender a liberdade das partes cuja vontade foi viciada”. Assim sendo, “(...) uma das causas da anulabilidade dos atos jurídicos é a incidência dos vícios da vontade: dolo, erro, simulação, violência ou fraude. Sempre que um ato jurídico está eivado por um desses vícios, é anulável, mas o mesmo não se pode dizer quando o ato jurídico em causa é o casamento. Aqui somente certos vícios são ponderáveis e o grau de sua ponderabilidade varia, é específico para o matrimônio.”
E prossegue o autor (p. 207): “Para que haja simulação é preciso que ambos estejam no propósito de dar eficácia ao ato que vão praticar. No matrimônio, não pode haver simulação, porque o magistrado que representa o Estado nunca pode estar nesse estado de espírito. O estado de espírito não lhe é legalmente reconhecível, como não se pode, do mesmo modo, reconhecer o Ministério Público a favor do réu, ou qualquer outra situação do gênero”.
É o caso de se falar em uma ação condenatória contra quem simulou o “desfazimento” da relação matrimonial, para se usar, entre aspas, da expressão atécnica prevista na lei? Qual seria o expediente utilizado? Uma ação anulatória da sentença de divórcio ou de união estável?
Veja-se o que afirma Francisco Clementino Pontes de Miranda (Tratado de Direito Privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1967. t. 4. §406) sobre a questão da fraude à lei, elemento que parece ter sido visado pelo legislador e não propriamente a simulação, atualmente uma causa de nulidade e não mais um defeito do negócio jurídico:
“Fraude à lei. A violação da lei cogente ainda pode ter importância nulificante quando se trate de fraude à lei, que se dá quando, pelo uso de outra categoria jurídica, ou de outro disfarce, se tenta alcançar o mesmo resultado jurídico que seria excluído pela regra jurídica cogente proibitiva. O agere contra legem não se confunde com o agere in fraudem legis: um infringe a lei, fere-a, viola-a, diretamente; o outro, respeitando-a, usa de maquinação, para que ela não incida; transgride a lei, com a própria lei. A interpretação há de mostrar que só se quis obter o que, pelo caminho proibido, não se obteria. O que importa é o conteúdo do negócio jurídico; não a forma. Há princípio geral, segundo o qual toda fraus legis importa nulidade (e já o mostramos de espaço); porque é preciso ao conceito que a fraude à lei consiga o que a regra jurídica cogente proibiu. A regra jurídica pode ser impositiva (sem razão, K. Linkelmann, Die Sicherheitbereignungen, Archiv für Bürgerliches Recht, 7, 216 s.) Já assentamos que as regras jurídicas impositivas (gebietende Rechtsnormen) são suscetíveis de fraude à lei. Se alguém deixa de satisfazer regra jurídica impositiva, há, de regra, nulidade por violação de regra jurídica cogente sobre forma (art. 145,111), ou sobre pressuposto material (art. 145, IV). Ou a regra jurídica é pré-juridicizante negativa, e não há ato jurí dico. Nesse, como naquele caso (cf. E Endemann, Uber die civilrechtliche Wirkung des \/erbotsgesetze, 69 s. e 75 s.), não houve infração, mas insuficiência ou deficiência (cf. § 17, 3).
Não basta que o suporte fático do negócio jurídico ou do ato jurídico strícto sensu seja ato criminal, ou ato ilícito (civil); é preciso que o preceito mesmo seja sancionado com a nulidade, no plano do direito civil, para se pensar em fraus legis.”
A meu ver, em verdade, buscou o dispositivo dar concretude ou reforço de aplicabilidade à causa de inelegibilidade estampada no artigo 14, § 7o, da Constituição Federal, segundo o qual são “inelegíveis, no território de jurisdição do titular, o cônjuge e os parentes consangüíneos ou afins, até o segundo grau ou por adoção, do Presidente da República, de Governador de Estado ou Território, do Distrito Federal, de Prefeito ou de quem os haja substituído dentro dos seis meses anteriores ao pleito, salvo se já titular de mandato eletivo e candidato à reeleição”.
Trata-se de regra constitucional de combate à perpetuação no poder de oligarquias políticas familiares, em contrariedade à democracia e aos valores republicanos. Confiram-se precedentes a respeito:
“Agravos    regimentais    no    recurso    extraordinário. Inelegibilidade. Artigo 14, § 7o, da Constituição do Brasil.
1. O artigo 14, § 7o, da Constituição do Brasil, deve ser interpretado de maneira a dar eficácia e efetividade aos postulados republicanos e democráticos da Constituição, evitando-se a perpetuidade ou alongada presença de familiares no poder.
Agravos regimentais a que se nega provimento” (RE no 543.117/AM-AgR, Segunda Turma, Relator o Ministro Eros Grau, Dje de 22/08/08)
“RECURSO    EXTRAORDINÁRIO.    ELEITORAL. REGISTRO DE CANDIDATURA AO CARGO DE PREFEITO. ELEIÇÕES DE 2004. ART. 14, §7o DA CF. CANDIDATO SEPARADO DE FATO DA FILHA DO ENTÃO PREFEITO. SENTENÇA DE DIVÓRCIO PROFERIDA NO CURSO DO MANDATO DO EX-SOGRO. RECONHECIMENTO JUDICIAL DA SEPARAÇÃO DE FATO ANTES DO PERÍODO VEDADO. INTERPRETAÇÃO    TELEOLÓGICA    DA    REGRA    DE INELEGIBILIDADE.
1. A regra estabelecida no art. 14, §7o da CF, iluminada pelos mais basilares princípios republicanos, visa obstar o monopólio do poder político por grupos hegemônicos ligados por laços familiares. Precedente.
2. Havendo a sentença reconhecido a ocorrência da separação de fato em momento anterior ao início do mandato do ex-sogro do recorrente, não há falar em perenização no poder da mesma família (Consulta no 964/DF - Res./TSE no 21.775, de minha relatoria).
3. Recurso extraordinário provido para restabelecer o registro de candidatura” (RE no 446.999/PE, Segunda Turma, Relatora a Ministra Ellen Gracie, DJ de 09/09/05).
Mas carece a previsão normativa em exame de uma regra juridicizante ex ante, para se valer da boa e velha terminologia de Pontes de Miranda. Quais os critérios normativos a serem utilizados para se condenar alguém pela suposta fraude na extinção do vínculo matrimonial?
É certo que existem situações constituídas com o fim de prejudicar terceiros ou mesmo de se evadir à aplicação da lei, como se observa nos divórcios com a finalidade de se preservar o patrimônio de credores ou de se obter direitos políticos (casamento para se obter determinada nacionalidade). Combatem-se os efeitos desses atos no campo próprio, a saber, na questão eficacial: atingimento de bens clausulados em execução ou perda da nacionalidade adquirida. Não se supõe, imagina ou aceita é se inventar uma causa de inelegibilidade a partir de uma condenação (não se sabe ao certo de que e em que área do Direito, se cível ou penal) por se ter tentado fraudar à lei por um divórcio com fins eleitorais.
No caso específico de dissolução fraudulenta da sociedade conjugal, de longa data, vem o Tribunal Superior Eleitoral reafirmando que sua ocorrência, uma vez configurada em sede de processo eleitoral, dá causa à aplicação da regra de inelegibilidade. Observe-se:
“ELEICOES MUNICIPAIS. REGISTRO DE CANDIDATO. INELEGIBILIDADE: PARENTESCO. (ART. 14, PARAGRAFO 7, DA CF, C/C ART. 1, VII, PARAGRAFO 3 DA LC N. 64/90).
A JURISPRUDENCIA DESTA CORTE E NO SENTIDO DE QUE "E ELEGIVEL PARA OS CARGOS DE PREFEITO OU VICE-PREFEITO O CONJUGE DO TITULAR DO CARGO EXECUTIVO    MUNICIPAL,    SEPARADO    DESTE JUDICIALMENTE,    DESDE    QUE    A    SENTENCA    DE SEPARACAO TENHA PRODUZIDO SEUS EFEITOS LEGAIS". (PRECEDENTE: CONSULTA N. 9.224).
QUANTO A AFINIDADE, A RESOLUCAO N. 17.997, ESTABELECEU ESTE TRIBUNAL QUE ‘A SUBSISTENCIA, PARA EFEITOS CIVIS, DA AFINIDADE, NA LINHA RETA, A DISSOLUCAO PELO DIVORCIO DO CASAMENTO QUE A ORIGINOU, NAO ACARRETA INELEGIBILIDADE DO ART. 14, PARAG. 7, DA CONSTITUICAO FEDERAL, SALVO
A    HIPOTESE    DE    SIMULACAO    FRAUDULENTA’. (PRECEDENTE: CONSULTA N. 12.533).
RECURSO CONHECIDO E PROVIDO” (RESPE no 9.920/PI, Relator o Ministro José Cândido de Carvalho Filho, publicado em sessão na data de 27/09/1992).
O problema do dispositivo em comento, contudo, não é a sua finalidade, a qual é reconhecida na jurisprudência da Corte Superior Eleitoral, mas a sua redação, que faz presumir a existência de hipótese de condenação ou de ação própria, que efetivamente não há, taxando tal situação como causa de inelegibilidade. Explico melhor.
O vínculo afetivo estabelecido entre o cônjuge ou o companheiro e o titular do mandato eletivo é tido pelo texto constitucional como causa de inelegibilidade, a qual, sendo configurada no bojo de processo eleitoral, gera o óbice de candidatura do outro par do relacionamento, despido de cargo político. Portanto, trata-se de fato jurídico que a Constituição Federal elegeu como causa de inelegibilidade. A essa hipótese, igualmente se amolda a pessoa que simula a dissolução do vínculo afetivo, com o fim de burlar a proibição de participação no pleito eleitoral.
A prescrição ora observada, contudo, incorre em equívoco, ao partir do pressuposto inexistente de que o ato de desfazer vínculo conjugal para evitar caracterização de inelegibilidade constitui ilícito autônomo, capaz de gerar, por si, espécie de condenação, ou hipótese autônoma de inelegibilidade.
Nos outros casos, como nos crimes eleitorais ou nos ilícitos de improbidade administrativa, há figura típica antecedente, à qual a legislação eleitoral acresce o plus da inelegibilidade, como decorrência da condenação, diga-se, transitada em julgado.
Nesse passo, entendo que se trata de capitulação legal impossível, pois, conquanto se admita que a hipótese de simulação fraudulenta de dissolução do casamento, verificada na ação eleitoral própria, não afaste a causa de inelegibilidade contida no art. 14, § 7o, da Constituição, não há como se admitir a anulação, ainda que por fraude, de cessação de vínculo conjugal e, muito menos, que essa “condenação” possa ser elencada como causa autônoma de inelegibilidade.
Em face disso, entendo ser inconstitucional a alínea “n” do art. 1o, embora não se afaste a possibilidade de se reconhecer, em sede de processo eleitoral, a ineficácia da dissolução de sociedade conjugal para evitar caracterização de inelegibilidade, como já o faz de longa data a Justiça Eleitoral, fazendo-se incidir, nesse caso, diretamente a aplicação da regra de inelegibilidade contida no art. 14, § 7o, da Constituição. Todavia, assim o faz não anulando a dissolução, mas afastando os seus efeitos quanto à inelegibilidade do cônjuge.
I) ART. 1o, “C”, E A POSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DAS NOVAS CAUSAS E PRAZOS DE INELEGIBILIDADE A FATOS OCORRIDOS    ANTERIORMENTE    À    EDIÇÃO    DA    LEI COMPLEMENTAR No 135/10
De início, eis a redação conferida pela LC 135/10 à alínea “c” do art. 1o da LC 64/90:
“c) o Governador e o Vice-Governador de Estado e do Distrito Federal e o Prefeito e o Vice-Prefeito que perderem seus cargos eletivos por infringência a dispositivo da Constituição Estadual, da Lei Orgânica do Distrito Federal ou da Lei Orgânica do Município, para as eleições que se realizarem durante o período remanescente e nos 8 (oito) anos subsequentes ao término do mandato para o qual tenham sido eleitos;”
Já a redação anterior era a seguinte:
“c) o Governador e o Vice-Governador de Estado e do Distrito Federal, o Prefeito e o Vice-Prefeito que perderem seus cargos eletivos por infringência a dispositivo da Constituição Estadual da Lei Orgânica do Distrito Federal ou da Lei Orgânica do Município, para as eleições que se realizarem durante o período remanescente e nos 3 (três) anos subseqüentes ao término do mandato para o qual tenham sido eleitos;”
Com efeito, a primeira indagação que se faz ao ler a alteração promovida pela LC 135/10 à alínea “c” do art. 1o da LC 64 é se pode a legislação ampliar prazo de inelegibilidade para quem já estava cumprindo o prazo de três anos.
A meu ver, essa assertiva não demanda maiores considerações. Trata-se de mera alteração do prazo de inelegibilidade, de três para oito anos, sem que isso implique em qualquer reprovabilidade constitucional.
Ora, se a lei pode inovar e criar novas hipóteses de inelegibilidade, por que não poderia ela ampliar ou tornar mais rigorosa causas de inelegibilidade já existentes? A mera alteração de prazo é um minus, se comparada a outras hipóteses, como a de criação de novo critério selecionador de condições subjetivas de elegibilidade.
Por outro lado, faz-se necessária, ainda, observação acerca da tese da irretroatividade da legislação, em inegável correlação com o fato de que situações jurídicas pretéritas, consolidadas e intangíveis não poderiam ser utilizadas para servir ao enquadramento de tipos normativos supervenientes.
Os problemas de direito intertemporal (artigo 5.°, inciso XXXVI, CF/1988, e art. 6°, LICC) regem-se por três hipóteses de eficácia das normas, segundo as antigas (e sempre atuais) lições de Paul Roubier (Le droit transitoire (conflits des lois dans le temps). 2. ed. Paris : Dalloz, 1960. p. 9 e ss.):
a) imediatidade: cada norma deve estabelecer todas as consequências decorrentes de pressupostos que ocorrerem durante sua vigência, o que abrange até mesmo aqueles que se completarem no desenvolvimento de fatos ou situações jurídicas advindas do tempo anterior;
b) retroatividade: é possível que a norma em vigor seja aplicável ainda a pressupostos completados anteriormente, o que implica a modificação de consequências jurídicas que a norma revogada já havia atribuído;

c) pós-atividade ou ultra-atividade: é possível que a norma revogada permaneça aplicável a pressupostos que venham a se completar depois de sua substituição por uma nova norma.
A incidência da Lei Complementar no 135/10 a casos pretéritos não diz respeito à retroatividade da lei de inelegibilidade, ou das novas causas de inelegibilidade, mas sim a sua aplicação aos processos eleitorais vindouros.
E qual momento do tempo determina as regras aplicáveis às condições de elegibilidade: (i) a data da prática do ato ou fato; (ii) a data de encerramento do processo judicial ou administrativo; (iii) ou do ato do registro de candidatura?
Como já é assente no Direito nacional, não há direito adquirido a regime jurídico de elegibilidade, que se afere no ato do registro da candidatura sob o império da condição rebus sic stantibus e, portanto, segundo as leis vigentes nesse momento. Não se impede, portanto, que se amplie o prazo de vedação à candidatura, ou a aplicação da novel legislação a fatores de inelegibilidades ocorridos anteriormente à sua vigência, pois esses requisitos devem ser aferidos em um momento único, como garantia da isonomia entre todos os postulantes à candidatura, e esse momento é e deve ser o do ato do registro da candidatura. Esse deve ser o marco temporal único, pois somente assim se coloca em patamar de igualdade todos os postulantes.
No meu sentir, aplicar o princípio da irretroatividade às hipóteses de inelegibilidade instauraria uma situação de insegurança jurídica nas eleições vindouras, pois teríamos um duplo regime jurídico de inelegibilidades, incompatível com a necessária estabilidade das regras que regem o processo eleitoral.
Não aplicar a Lei Complementar no 135/10 a todos os pedidos de registro de candidatura futuros, teria o efeito de fazer permanecer a legislação anterior, e suas hipóteses e prazos de inelegibilidade, em situação de ultra-atividade, pois, ainda que revogados, permaneceriam aplicáveis aos atos, fatos e processos que foram realizados, praticados ou finalizados anteriormente à vigência da lei.
Essa situação faria incidir sobre o mesmo processo eleitoral um duplo regime jurídico de inelegibilidades, de forma que, no mesmo pleito, teríamos candidatos submetidos à LC no 135/10 e outros à legislação anterior. E essa situação permaneceria por tempo indefinido, pois embora o ato ou fato possa ter sido praticado em momento anterior à vigência da LC no 135/10, o trânsito em julgado da condenação – ou mesmo a condenação em órgão colegiado como afirma a legislação – poderá ocorrer somente daqui a cinco, dez, sabe-se lá quantos anos.
Sem falar que, nesse espaço de tempo, poderemos ter a edição de novas leis e a criação de novas hipóteses de inelegibilidade, e ao invés de dois, já teremos três, quatro regimes simultâneos de inelegibilidade.
Por outro lado, se o que valesse fosse a lei vigente no momento da condenação definitiva, poderíamos ter dois candidatos que praticaram o mesmo ato, na mesma data, mas como o processo judicial ou administrativo de um deles teve tramitação mais célere e, portanto, findou-se antes da vigência da nova lei, será ele beneficiado, em detrimento do outro.
Para melhor dimensão, cito um exemplo, ainda mais radical: uma emenda constitucional, em tese, poderia alterar o art. 14, § 7o, da Constituição, para estabelecer que são inelegíveis os parentes consangüíneos ou afins, até o terceiro grau, e não mais até o segundo grau. Caso se aplicasse o princípio da irretroatividade, ao ponto de impedir a aplicação dessa causa de inelegibilidade aos fatos anteriores, a nova regra somente seria aplicável aos parentes de terceiro grau (tios ou sobrinhos) que nasceram a partir da data da sua vigência.
Ora, Senhores Ministros, se uma norma passa a exigir novas condições para que alguém seja candidato, essa inovação embora esteja pautada por um fato pretérito, somente deve valer para processos eleitorais futuros. Em verdade, a criação de novo critério selecionador de condições subjetivas de elegibilidade, que, necessariamente, se opera para o futuro, busca esses requisitos no passado.
E o que evitaria a criação de cláusulas de inelegibilidades casuísticas? O art. 16 da Constituição da República. A lei que alterar o processo eleitoral, afirma o artigo 16, CF/1988, não se aplica à eleição que ocorra até um ano de sua vigência. Com o princípio da anterioridade eleitoral, a Carta Magna assegura que as mudanças no processo eleitoral não sejam editadas com a finalidade de favorecer ou prejudicar determinado candidato. Como explicitado pelo eminente Ministro Celso de Mello, na ADI 3.345, DJe-154 20/8/2010, os contornos do art. 16, CF/1988, foram devidamente assentados como uma norma “que consagra o postulado da anterioridade eleitoral (cujo precípuo destinatário é o Poder Legislativo)” e que se vincula, “em seu sentido teleológico, à finalidade ético- jurídica de obstar a deformação do processo eleitoral mediante modificações que, casuisticamente introduzidas pelo Parlamento, culminem por romper a necessária igualdade de participação dos que nele atuam como protagonistas relevantes (partidos políticos e candidatos), vulnerando-lhes, com inovações abruptamente estabelecidas, a garantia básica de igual competitividade que deve sempre prevalecer nas disputas eleitorais”.
Não vejo, por isso, inconstitucionalidade na alínea “c” do art. 1o, e não vejo óbice constitucional para concluir pela possibilidade de aplicação das novas causas e prazos de inelegibilidade a fatos ocorridos anteriormente à edição da lei complementar no 135/10.
J) CONCLUSÃO
Senhores Ministros, as considerações que desenvolvi pautam-se pela ideia central de que a soberania reside na Constituição, na qual se materializa a própria soberania popular. Qualquer forma de limitação aos princípios constitucionais, especialmente advinda do legislador, deve ser combatida em nome da guarda da Constituição.
Como bem salientou o jurista alemão Christian Starck, em texto originalmente apresentado em castelhano, intitulado “A legitimação da Justiça    Constitucional    e    o    princípio    democrático”    (Anuario Iberoamericano de Justicia Constitucional. n. 7, p. 479-493, 2003. p. 489), “em uma Constituição que reivindica superioridade frente às leis ordinárias não há espaço para sonhos ou castelos no ar. Podem também ter efeitos prejudiciais os programas e os apelos contidos em uma Constituição, quando o Tribunal Constitucional serve-se deles para obrigar o legislador hic et nunc como o requer o direito em termos estritos. Os Tribunais Constitucionais devem agir com moderação, procurando não estender nem condensar o conteúdo jurídico da Constituição criando pretensões exageradas”.
Com essas considerações, voto no sentido seguinte:
1) Pela procedência parcial do pedido formulado na ADI 4.578, tão somente para conferir interpretação conforme à alínea "m" do art. 1o, esclarecendo que a causa de inelegibilidade somente incide após a condenação definitiva no âmbito administrativo, de forma que o prazo de inelegibilidade somente começa a contar a partir da decisão administrativa final;
2) Pela procedência do pedido da ADC 29, para declarar a constitucionalidade da aplicação da Lei Complementar no 135/10 a atos e fatos jurídicos que tenham ocorrido antes do advento do referido diploma legal;
3) Pelo conhecimento parcial da ADC 30 e, na parte conhecida, julgar parcialmente procedente, para:
a) declarar a constitucionalidade do art. 1o, alíneas “c”, “f”, “k”, e seus §§ 4o e 5o;
b) conferir interpretação conforme à expressão “aplicando-se o disposto no inciso II do art. 71 da Constituição Federal, a todos os ordenadores de despesa, sem exclusão de mandatários que houverem agido nessa condição” contida na parte final da alínea “g” do art. 1o, para esclarecer que os Chefes do Poder Executivo, ainda quando atuam como ordenadores de despesas, submetem-se aos termos do inciso I do art. 71 da Carta Federal;
c) conferir interpretação conforme às alíneas “m” e “o” do art. 1o para esclarecer que a causa de inelegibilidade somente incide após a condenação definitiva no âmbito administrativo, de forma que o prazo de inelegibilidade começa a contar a partir da decisão final administrativa definitiva;
d) conferir interpretação conforme à alínea “q” do art. 1o, para que (i) a expressão “por decisão sancionatória” pressuponha decisão administrativa definitiva e que (ii) o termo “sentença” seja interpretado como decisão judicial transitada em julgado, na forma do art. 95, I, da Lei Fundamental;
e) declarar a inconstitucionalidade da alínea “n” do art. 1o;
f) declarar a inconstitucionalidade das expressões “ou proferida por órgão colegiado” contidas nas alíneas “d”, “e”, “h” e “l” do art. 1o;
g) declarar a inconstitucionalidade das expressões “ou proferida por órgão colegiado da Justiça Eleitoral” contidas nas alíneas “j” e “p” do art. 1o;
h) declarar a inconstitucionalidade, por arrastamento, (i) do art. 15, caput; (ii) da expressão “independentemente da apresentação de recurso” contida no parágrafo único do art. 15; (iii) dos arts. 26-A e 26-C, caput e §§ 1o, 2o e 3o, todos da Lei Complementar no 64/90, com as alterações promovidas pela Lei Complementar no 135/2010; e (iv) do art. 3o da Lei Complementar no 135/10.
É como voto.

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