VOTO-VISTA
I. A Premissa Fundamental: a Lei da Ficha Limpa e sua relevância
no fortalecimento das instituições democráticas.
Senhor MINISTRO LUIZ FUX: Senhor Presidente, Egrégia
Corte, douta representante do Ministério Público Federal, ilustres
advogados, demais presentes, inicio meu voto-vista afirmando que a
Lei Complementar no 135/2010, cognominada de Lei da Ficha
Limpa, cujo sentido e alcance estão em jogo nesses autos, representa
um marco histórico no fortalecimento de nossas instituições
democráticas.
Como de sabença, a Lei Complementar no 135/2010
resultou de intensa mobilização da sociedade civil organizada,
capitaneada, dentre outros, pelo Movimento de Combate à
Corrupção Eleitoral, que formalizara projeto de lei junto à Câmara
dos Deputados subscrito por mais de 1,3 milhão (um milhão e
trezentos mil) cidadãos1. O propósito não poderia ser mais
inequívoco: expungir da classe política pretensos candidatos que,
por sua vida pregressa, tenham vilipendiado valores tão caros ao
processo eleitoral, conforme se infere do art. 14, § 9o, da Lei
Fundamental, como a ética, a moralidade e a probidade na gestão da
coisa pública.
Não é novidade que há muito a sociedade civil organizada
reclama por ética e por moralidade no exercício desse munus
público, que é tornar-se um representante eleito, um agente político.
Para o cidadão, hoje é certo que a probidade é condição inarredável
para a boa administração pública e, mais do que isso, que a
corrupção e a desonestidade são as maiores travas ao
desenvolvimento do país e ao resgate da credibilidade dos agentes
políticos perante a sociedade.
Mas não é só aos agentes eleitos que é imposta a estrita
observância dessas diretrizes de alinhamento moral. Aos pretensos
candidatos também é exigida a retidão ética, mediante o
enquadramento de suas ações pregressas a aludidos cânones de
probidade. Um cidadão que corrompe para ingressar no poder, a
fim de investir-se em um mandato eletivo, também é capaz de
corromper para perpetuar-se nele.
Se é correta, consoante hodiernos estudos de ciência
política, a premissa de que existe um descolamento entre a classe
política e a sociedade civil, esse distanciamento deve ser creditado,
em larga medida, (i) à ausência de uma cultura verdadeiramente
republicana e transparente na condução da res pública e (ii) ao
promíscuo, nefasto e aviltante patrimonialismo entranhado em
nossas instituições e em nossas relações sociais, já denunciado
outrora pelo saudoso Raymundo Faoro, em seu clássico Os Donos do
Poder, que proporciona a apropriação indevida da coisa pública pelos agentes eleitos ou por seus apadrinhados e a confusão perene – e igualmente deletéria – entre o público e o privado, apanágios
que lamentavelmente ainda vicejam nos dias atuais.
Não por outra razão foi pensado um novo arranjo
normativo para extirpar, ou, ao menos, amainar, práticas abusivas
de poder econômico, político, de malversação de recursos públicos,
levadas a efeito por quem esteja no poder político ou por quem
pretende vir a exercê-lo.
Ao editar a LC no 135/2010, e estabelecer critérios mais
rigorosos para o exercício do ius honorum, o legislador ordinário não
apenas prestigiou a vontade popular soberana, mas também [o
legislador] deu concretude aos cânones constitucionais de
moralidade e de ética, encartados no art. 14, § 9o, da Constituição de
1988 que devem presidir a competição eleitoral e pautar a conduta
do agente político quando da gestão da res publica. Dito de outro
modo, o Congresso Nacional, ancorado na legítima manifestação
popular de 1,3 milhão de eleitores, erigiu um sólido Estatuto da
Moralidade do Processo Eleitoral, na feliz expressão cunhada pelo
eminente Ministro, e amigo, Joaquim Barbosa.
Aqui residem as premissas mais relevantes, e que devem
nortear o deslinde da presente controvérsia: os mandamentos
constitucionais de moralidade e de ética. Com efeito, a Lei da Ficha Limpa materializa, no plano
infraconstitucional, a vontade do constituinte de 1988, notadamente
o de revisão (ECR no 4/94), que expressamente autorizou o estabelecimento de novas hipóteses de inelegibilidade, no afã de
salvaguardar a probidade administrativa, a moralidade para
exercício de mandato, considerada a vida pregressa do candidato, e
a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do
poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou
emprego na administração direta ou indireta.
Trata-se, à evidência, de arranjo institucional do processo
político delineado pelo titular do poder constituinte que claramente
optou por prestigiar, nesta quadra histórica, a moralidade no prélio
eleitoral, desenho este que teve ressonância no Congresso Nacional,
e que fora chancelada pela Suprema Corte, enquanto intérpretes
autorizados da Carta Fundamental da República.
Como dito, o próprio constituinte vislumbrou que a
competição eleitoral não pode prescindir da observância de certos
padrões mínimos de conduta por parte de seus players (e futuros
agentes políticos): não se há de falar em legitimidade democrática
quando as condutas atribuídas aos pretensos candidatos e aos
titulares dos mandatos eletivos amesquinham os patamares éticos e
morais erigidos pelo legislador ordinário.
Eis a consequência inescapável: impõe-se que esta Suprema
Corte repudie interpretações das causas de inelegibilidade que
fustiguem essa teleologia subjacente. É preciso, pois, cautela para
com a fixação de exegeses que vulnerem o escopo da norma, sob
pena de encerrar verdadeira fraude à manifestação legítima e soberana da sociedade brasileira, que contou, repiso, com a
aquiescência dos membros do Parlamento.
Penso, nesse pormenor, que não podemos transigir com
tentativas obtusas de implodir, pela via hermenêutica, os propósitos
republicanos e moralizadores, nortes da edição da Lei da Ficha
Limpa, que propugnam por ética e transparência na gestão da coisa
pública e observância à legitimidade e à lisura das eleições.
Com a Lei da Ficha Limpa, a sociedade deu um importante
passo rumo à moralização do processo eleitoral. Agora, esta
Suprema Corte deve ter a preocupação de, ao apreciar a quaestio
debatida, não olvidar-se dos comandos constitucionais inafastáveis
para a participação no processo político, máxime porque insculpidos
no art. 14, § 9o, da Carta de 1988, e evitando endossar interpretação
às cláusulas de inelegibilidade excessivamente dissonante a estes
valores fundamentais, sob pena de solapar esse projeto político de
moralização da política e das eleições.
Feitas essas brevíssimas considerações, passo a examinar a
questão de fundo.
II. Breve relato dos fatos.
No caso sub examine, cuida-se de recurso extraordinário
(RE no 929.6702), interposto por DILERMANDO FERREIRA
SOARES, com espeque no art. 102, III, a, da Constituição da
República, em face de aresto proferido pelo Tribunal Superior
Eleitoral, que mantivera o indeferimento do pedido de registro de
candidatura formalizado pelo ora Recorrente.
Na origem, o juízo a quo indeferira o pedido de registro de
candidatura de DILERMANDO FERREIRA SOARES, ante a
incidência da inelegibilidade inserta no art. 1o, inciso I, alínea d, da
Lei Complementar no 64/90 (inelegibilidade em decorrência da
condenação por abuso de poder econômico ou político).
Na espécie, o Recorrente fora condenado em ação de
investigação judicial eleitoral (AIJE), com a cassação de seu diploma
e a declaração de inelegibilidade por 3 (três) anos, pela prática de
abuso de poder econômico. Aludida decisão transitou em julgado
em 2004, sendo certo que teve seu registro indeferido, em razão do
aumento do prazo da inelegibilidade constante do art. 1o, inciso I,
alínea d, de 3 (três) para 8 (oito) anos, levada a efeito pela Lei
Complementar no 135/2010.
Contra aludida decisão, foi interposto recurso eleitoral, ao
qual foi negado provimento pelo Tribunal Regional Eleitoral da
Bahia.
2 Originalmente, o feito sub examine fora autuado como ARE, ao qual foi atribuído o no 785.068.
Sobreveio, então, a interposição de recurso especial
eleitoral, distribuído à relatoria da Ministra Laurita Vaz (REspe no
348-11). Em seu decisum monocrático, a Ministra Relatora negou
seguimento ao apelo nobre eleitoral, nos termos da jurisprudência
iterativa da Corte Superior Eleitoral, segundo a qual, “[a]inda que se
trate de condenação transitada em julgado, em representação por abuso do
poder econômico ou político referente a eleição anterior à vigência da Lei
Complementar n° 135/2010, incide a inelegibilidade prevista na alínea d do
inciso I do art. 1° da Lei Complementar n° 64/90, cujo prazo passou a ser
de oito anos.”. Manteve-se, portanto, o indeferimento do registro de
candidatura.
Irresignado, o Recorrente interpôs agravo regimental,
desprovido, por unanimidade, pelo TSE. Eis a ementa do acórdão:
ELEIÇÃO 2012. REGISTRO DE CANDIDATURA
INELEGIBILIDADE ART. 1°, INCISO I, ALÍNEA d, DA LC N°
64/90, COM AS ALTERAÇÕES DA LC N° 135/2010.
APLICAÇÃO DA NOVA DISCIPLINA A FATOS
ANTERIORES. POSSIBILIDADE. PRAZO. OITO ANOS.
CONTAGEM. OFENSA PRINCÍPIO DA SEGURANÇA
JURÍDICA NÃO OCORRÊNCIA DESPROVIMENTO.
1. Este Tribunal firmou orientação de que a causa de
inelegibilidade prevista na alínea d do inciso I do art. 1° da Lei
Complementar no 64/90 incide a partir da eleição da qual
resultou a condenação até o final dos oito anos seguintes,
independentemente da data em que se realizar a eleição (REspe
7
na 165-12/SC, Rel. Ministro ARNALDO VERSIANI, publicado
na sessão de 25.9.2012).
2. O fato de a condenação nos autos de representação por abuso
de poder econômico ou político haver transitado em julgado, ou
mesmo haver transcorrido o prazo da sanção de três anos,
imposta por força de condenação pela Justiça Eleitoral, não
afasta a incidência da inelegibilidade constante da alínea d do
inciso I do art. 1o da Lei Complementar na 64/90, cujo prazo
passou a ser de oito anos.
3. A inelegibilidade assim como a falta de qualquer das
condições de elegibilidade nada mais são do que restrições
temporárias à possibilidade de qualquer pessoa se candidatar e
devem ser aferidas a cada eleição, de acordo com as regras
aplicáveis no pleito, não constituindo essa análise ofensa ao
direito adquirido, ao ato jurídico perfeito, à coisa julgada ou à
segurança jurídica.
4. Agravo regimental a que se nega provimento.
Foram opostos ainda embargos de declaração, os quais
foram rejeitados.
Na sequência, foi interposto recurso extraordinário.
A eminente Ministra Cármen Lúcia, no exercício da
Presidência daquela Corte Superior, inadmitiu o apelo nobre.
Entendeu Sua Excelência que “[o] acórdão do Tribunal Superior
Eleitoral, portanto, não negou vigência aos dispositivos da Constituição da República”, mas, em vez disso, “aplicou o entendimento do Supremo Tribunal Federal consolidado no julgamento das Ações Diretas de
Constitucionalidade n. 29 e n. 30 e na Ação Direta de
Inconstitucionalidade n. 4578, da re1atoria do Ministro Luiz Fux”,
segundo as quais “as modificações introduzidas pela Lei Complementar
n. 135/2010 se aplicam a fatos anteriores, verificáveis no processo de
registro de candidatura.”.
Interposto agravo nos próprios autos em face do despacho
de inadmissibilidade (ARE no 785.068), o relator Ministro Ricardo
Lewandowski, em um primeiro momento, negou seguimento ao
recurso.
Diante disso, o Recorrente interpôs agravo regimental. Na
sessão de 07.10.2015, o Tribunal deu provimento ao agravo
regimental, para admitir o recurso extraordinário, reconhecendo a
repercussão geral da matéria.
Em suas razões, o Recorrente alega o ultraje ao art. 5o,
incisos XXXV (juízo natural), XXXVI (direito adquirido e coisa
julgada) e ao XL (irretroatividade da lei penal e retroatividade da lei
penal mais benéfica).
Em preliminar formal e fundamentada, aduz a existência
de repercussão geral. No mérito, advoga a impossibilidade de
aplicação retroativa, ao seu caso concreto, da ampliação do prazo de
inelegibilidade de 3 (três) para 8 (oito) anos, uma vez que já tinha se
verificado o exaurimento do prazo cominado no título judicial
condenatório em 2007.
Articula, ainda, que os princípios da segurança jurídica e
da irretroatividade de lei mais gravosa exigiriam a aplicação do
prazo de 3 (três) anos previsto na redação originária do art. 1o, inciso
I, alínea d, do Estatuto das Inelegibilidades.
Em abono de sua pretensão, assevera a higidez de seu
estado jurídico de elegibilidade na data do prélio de 2012. É que,
ainda que se admita a incidência in casu do aumento do prazo para 8
(oito) anos, o termo a quo para a contagem de sua restrição à
cidadania passiva deveria ser a data do pleito das eleições
municipais de 2004 (03.10.2014) e teria como data final o dia
03.10.2012, razão pela qual ter-se-ia o exaurimento da
inelegibilidade em momento anterior à data fixada para as eleições
locais naquele ano (07.10.2012).
Foram apresentadas contrarrazões.
Em seu pronunciamento, o Ministério Público Federal
opinou pelo desprovimento do recurso extraordinário. Eis a ementa
da manifestação ministerial:
“RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL E
ELEITORAL. REPERCUSSÃO GERAL. TEMA 860. LEI
COMPLEMENTAR 64/1990, ARTIGO 1o, INCISO I, ALÍNEA D.
NOVA REDAÇÃO. APLICAÇÃO A FATOS ANTERIORES À
ALTERAÇÃO. POSSIBILIDADE. INELEGIBILIDADE
REFLEXA. ESCOAMENTO DO PRAZO DE JNELEGIBIDADE-
SANÇÃO. CIRCUNSTÂNCIA INDIFERENTE. OFENSA A COISA JULGADA. INEXISTÊNCIA, PROVIMENTO DO
RECURSO.
1 - Tese de Repercussão Geral (Tema 860): Aplica-se o prazo de
oito anos de inelegibilidade por abuso de poder previsto no art.
1o, I, ‘d’, da Lei Complementar 64/1990, na redação dada pela
Lei Complementar 135/2010, às situações anteriores à
modificação de sua redação, mesmo que, por força de decisão
transitada em julgado, tenha sido aplicada e integralmente
cumprida sanção de inelegibilidade por três anos, pois diversos
os impedimentos decorrentes, de inelegibilidade reflexa e de
inelegibilidade-sanção.
2 - Não há retroatividade na consideração de fatos passados pra
declarar-se presentes as inelegibilidades reflexas previstas no
inciso I do art. 1o da Lei Complementar 64/1990, ainda que
ocorridos antes da edição da lei que os desvalorou ou que
ampliou o prazo do impedimento, pois tais inelegibilidades não
possuem a natureza de sanção, sendo aferidas no momento do
pedido de registro da candidatura, de forma contemporânea a
cada processo eleitoral, e não existe direito adquirido a regime
jurídico.
3 - Não há afronta à coisa julgada em razão da aplicação do
prazo de inelegibilidade de oito anos, previsto no art. 1o, I, ‘d’,
da Lei Complementar 64/1990, mesmo quando já escoada a
sanção de inelegibilidade fixada no total de três anos em
decisão judicial em representação, na forma do art. 22, inciso
XIV, da mesma lei, porque são diversos os impedimentos,
tratando-se o primeiro de inelegibilidade reflexa decorrente de
desvalor da conduta declarada existente no pronunciamento pretoriano e não de sanção, nos mesmos moldes das previsões
das demais alíneas do referido inciso, calcando-se em requisitos
diversos dos exigidos para a inelegibilidade-sanção.
4 - Não é possível conhecer da discussão acerca do dia inicial da
contagem do prazo de inelegibilidade de oito anos previsto no
art. 1o, inciso I, alínea ‘d’, da Lei Complementar 6411990, dado
ter sede exclusivamente infraconstitucional;
5 - Parecer pelo desprovimento do recurso extraordinário”.
Na assentada de 16.11.2015, o eminente Relator deu
provimento ao recurso extraordinário, para deferir o registro de
candidatura de DILERMANDO FERREIRA SOARES. Em sua
fundamentação, o Ministro Ricardo Lewandowski assentou que o
prazo de inelegibilidade de 3 (três) anos estabelecido pela Justiça
Eleitoral nos autos de ação de investigação judicial eleitoral na
redação originária do art. 22, XIV, da LC no 64/94 consubstanciaria
hipótese distinta do art. 1o, inciso I, alínea d, do mesmo diploma
legal.
Justamente por isso, a “sanção” de inelegibilidade seria
parte integrante da decisão de procedência, de forma que, quando já
integralmente cumprida, estaria acobertada pela garantia da coisa
julgada. Como consequência, aludido prazo, decorrente da
cominação judicial de inelegibilidade, integraria, de forma
indissociável e definitiva, o título judicial que atingira o Recorrente,
diante de seu trânsito em julgado. Antecipando seu voto, o Ministro Gilmar Mendes
acompanhou as conclusões do Ministro Relator.
Na ocasião, pedi vistas dos autos para debruçar-me com
mais vagar sobre a tese jurídica debatida nos autos, notadamente
porque tenho me manifestado em sentido diametralmente oposto
àquele esposado pelos eminentes Ministros que me antecederam.
Amadurecidas minhas reflexões, trago-as à apreciação dos
eminentes pares.
III. Delimitação da controvérsia jurídica travada.
Consoante se depreende do relatório, a controvérsia
jurídica travada no recurso sub examine cinge-se em perquirir se há,
ou não, ofensa às garantias constitucionais da coisa julgada e da
irretroatividade da lei gravosa, ex vi, respectivamente, do art. 5o,
XXXVI e XL, nas hipóteses de aumento de prazo de 3 (três) para 8
(oito) anos da inelegibilidade prevista no art. 22, XIV, da LC no
64/90, em razão de condenação por abuso de poder político ou
econômico, quando (i) se verificara o trânsito em julgado e (ii)
ocorrera o exaurimento do prazo de 3 anos, tal como disposto na
redação primeva do indigitado preceito.
Para o Ministro Relator e o Ministro Gilmar Mendes, que o
acompanhou, referida ampliação do prazo, levada a cabo pela Lei
da Ficha Limpa, encerraria hipótese de retroatividade máxima, o art.1o, inciso I, da LC no 64/90, a restrição ao ius honorum do art. 22, XIV,
ostentando natureza de sanção.
Com o respeito devido e merecido, ponho-me a divergir.
O regime jurídico das condições de elegibilidade e das
hipóteses de inelegibilidade se ancora em critérios político-
legislativos que possuem racionalidades e fundamentos diversos,
conforme comprovam 4 (quatro) exemplos que passo a indicar: há
normas restritivas ao exercício do ius honorum cujo telos subjacente
consiste em preservar a soberania nacional, mediante o
reconhecimento da inelegibilidade absoluta de estrangeiros
(CRFB/88, art. 14, § 2o c/c § 4o)3. Além disso, os conscritos, já que
submetidos a regime de hierarquia e disciplina, estariam mais
suscetíveis a obedecerem ordens superiores, razão por que também
foram qualificados juridicamente como inalistáveis e absolutamente
inelegíveis (CRFB/88, art. 14, § 2o c/c § 4o). De efeito, é imperioso que
o exercício do mandato político-eletivo não sofra ingerências
externas que possam asfixiar a independência e a autonomia do
agente político no desempenho de seu mister.
Adotou-se, ainda, por mais atávico que seja, critério
calcado em aspectos cognitivos para o desempenho do direito de ser
votado (i.e., inelegibilidade absoluta de analfabetos), a teor do art.
14, § 4o, da CRFB/88. Por fim, proscreveu-se a perpetuação de
indivíduos ou o continuísmo de grupos familiares no exercício do poder político (art. 14, §§ 5o e 7o, da CRFB/88). Como se percebe,
inexiste uniformidade nas razões metajurídicas que justificam a
veiculação de hipóteses de inelegibilidade.
Justamente essa multiplicidade de fundamentos que
autoriza o legislador complementar a introduzir novas causas de
inelegibilidade. Com efeito, há as causas de inelegibilidade que
potencializam os princípios constitucionais da moralidade e da
probidade, como sói ocorrer nas hipóteses encartadas na Lei da
Ficha Limpa. E, não há qualquer novidade, no fato de que, se
incorrer em quaisquer dessas causas, o cidadão terá seu direito de
capacidade eleitoral passiva interditado, ainda que
temporariamente.
Esse raciocínio nos conduz a uma primeira conclusão: as
circunstâncias acima elencadas interditam per se que se defenda com
fortes tintas a tese segundo a qual a inelegibilidade possua cariz
sancionatório, em quaisquer de suas causas de incidência, inclusive
naquelas tipificadas na Constituição e na Lei da Ficha Limpa. Do
contrário, estar-se-ia admitindo, ilustrativamente, que a ordem
constitucional pune os indivíduos que sequer tiveram acesso à
educação elementar (caso dos analfabetos), ao imputar-lhes a
vedação ao exercício do seu direito político passivo. Cuida-se [as
inelegibilidades] de simples opções político-legislativas, alicerçadas
em fundamentos diversos, que limitam o acesso dos cidadãos aos
cargos eletivos.
A propósito, no julgamento das ADCs no 29 e no 30, o
Plenário da Suprema Corte assentou, por maioria, que a
inelegibilidade ostenta natureza jurídica de requisito negativo de
adequação do indivíduo ao regime jurídico do processo eleitoral.
À guisa deste entendimento, rechaçou-se veementemente o caráter
sancionatório ou punitivo das hipóteses de inelegibilidade
veiculadas na Lei Complementar no 64/90.
Diante disso, é de se indagar: existe no ordenamento
jurídico pátrio a figura da inelegibilidade-sanção? Refaço a pergunta
noutros termos: o fato de o legislador complementar utilizar, no art.
22, XIV, o vocábulo “sanção” para referir-se à causa de
inelegibilidade transmuda a natureza jurídica do instituto, de sorte a
infirmar as conclusões a que chegou a Corte quando do julgamento
das ADCs no 29 e no 30 acerca da natureza jurídica das hipóteses de
inelegibilidade? Esses questionamentos se afiguram essenciais ao
deslinde da discussão, na medida em que, a depender da resposta
fornecida, altera-se a compreensão de que o aumento do prazo de 3
para 8 anos prevista na Lei da Ficha Limpa implicaria retroatividade
máxima proscrita pela Constituição.
E a resposta a este questionamento, antecipa-se, é negativa.
Minhas conclusões estão alicerçadas em três fundamentos.
IV. Mérito.
IV. 1. Da inexistência de um duplo regime jurídico de
inelegibilidades no art. 1o, inciso I, da LC no 64/90: todas as hipóteses
gravadas traduzem efeitos reflexos, e não sanções.
Em primeiro lugar, afigura-se irrelevante, no afã de
perquirir a natureza jurídica do art. 22, XIV c/c o art. 1o, inciso I,
alínea d, a circunstância de a inelegibilidade constar, ou não,
expressamente do título judicial na condenação pela prática de
abuso de poder econômico ou político.
Já assentei em sede doutrinária (FUX, Luiz. Novos
Paradigmas do Direito Eleitoral. Belo Horizonte: Fórum, 2016, p. 186),
e em diversas manifestações no TSE, que a decisão condenatória,
nos termos do art. 22, XIV, que declara ou constitui a
inelegibilidade, se assemelha, quanto aos efeitos jurídico-eleitorais,
às demais hipóteses das alíneas do art. 1o, I.
Em termos mais singelos: a decisão que reconhece a
inelegibilidade, a teor do art. 22, XIV, somente produzirá seus
efeitos na esfera jurídico-eleitoral do condenado, se, e somente se,
este vier a formalizar registro de candidatura em eleições
vindouras, ou em recurso contra a expedição do diploma, em se
tratando de inelegibilidades infraconstitucionais supervenientes.
Daí por que inexiste fundamento, do ponto de vista lógico-jurídico,
para pugnar pela distinção de regimes jurídicos entre o art. 22, XIV,
e seu espelho no art. 1o a alínea d (as quais seriam tratadas como sanção), e para as demais alíneas (as quais seriam tratadas como
efeito secundário).4 (quatro) exemplos corroboram a tese proposta. Os dois
primeiros rejeitam o caráter sancionatório da inelegibilidade do art.
22, XIV, na medida em que a produção de seus efeitos jurídico-
eleitorais se assemelha ao dos demais tipos constantes do art. 1o,
inciso I. Daí que não há que se insistir nessa dualidade de regimes
jurídicos de inelegibilidades. Os dois finais (3o e 4o) evidenciam,
ainda mais, que essa suposta natureza sancionatória do art. 22, XIV
(tese defendida pelos eminentes Ministros que já votaram) seria
facilmente modificada para efeito secundário por uma simples
alteração legislativa: seria suficiente que o art. 22, XIV, previsto
em LC, fosse tipificado em lei ordinária. Assim, ter natureza de
sanção ou não dependeria da lei em que estivesse tipificado o ilícito
eleitoral. Passemos, a seguir, a cada um deles.
Primeiro exemplo. Imagine-se que determinado agente
público tenha suas contas rejeitadas, em que reste devidamente
demonstrada a irregularidade insanável que configure ato doloso de
improbidade administrativa por decisão irrecorrível do órgão
competente. No exemplo aventado, esse agente público estará
inelegível nos termos do art. 1o, I, alínea g, da LC no 64/90, em
decorrência de estarem presentes todos os requisitos legais. A
despeito de a restrição ao ius honorum não constar formalmente da
decisão de rejeição de contas, o agente público estará, sim, repiso,
inelegível.
Todavia, esse estado jurídico de inelegibilidade somente
será aferido se o agente público protocolizar seu registro de
candidatura, ocasião em que a restrição à cidadania passiva
produzirá seus efeitos jurídico-eleitorais. Não formalizado o
requerimento de registro de candidatura, a inelegibilidade
permanece latente, e não surtirá efeitos, para fins eleitorais, na esfera
jurídica do agente público. E ninguém objeta que, na situação
hipotética ventilada, se trata de hipótese de inelegibilidade como
efeito secundário.
Pois bem. Situação similar ocorre quando há a condenação
por abuso de poder econômico ou político em sede de ação de
investigação judicial eleitoral (LC no 64/90, art. 22, XIV). E, aqui,
passo ao segundo exemplo.
Imagine-se, agora, que determinado indivíduo tenha sido
condenado nos termos do art. 22, XIV (abuso de poder econômico).
O magistrado declarará a inelegibilidade na própria decisão judicial,
além da cassação do registro ou diploma. Entretanto, e tal como na
hipótese da alínea “g”, os efeitos dessa inelegibilidade permanecem em
estado de latência [e esse é o ponto a ser considerado], não obstante a
menção ao termo inelegibilidade constar do título judicial.
Eventuais efeitos jurídico-eleitorais dependem, por
conseguinte, do requerimento de registro de candidatura do cidadão
condenado. Sem essa formalização do registro, descabe cogitar de produção de efeitos imediatos da inelegibilidade, para fins
eleitorais, ainda que expressamente assentada na decisão judicial.
Indaga-se, mais uma vez: e se o magistrado não cominar a
inelegibilidade no título judicial, de forma a assentar apenas e tão só
a cassação do diploma? O indivíduo condenado pela prática abusiva
ainda assim permanece inelegível, ou, diante dessa omissão do juiz,
manteria seu estado jurídico de elegibilidade incólume?
Evidentemente, a ausência de menção no título condenatório não
elide a inelegibilidade, a qual seria reconhecida pela incidência do
art. 1o, inciso I, alínea d, da LC no 64/90.
Noutros termos, a declaração de inelegibilidade, com
espeque no art. 22, XIV, não produz quaisquer efeitos jurídico-
eleitorais imediatos na esfera jurídica do condenado. Diversamente
da pena de cassação do diploma (esta, sim, produz efeitos
imediatos), a existência, ou não, de causa restritiva do ius honorum
somente será aferida em ulterior formalização de registro de
candidatura pelo condenado. Até lá, os efeitos da declaração de
inelegibilidade ficam potencialmente sobrestados, em nada
alterando o estado jurídico do cidadão condenado. Em suma: a
inelegibilidade, também quando constante do título, se traduz
como a mera inadequação subjetiva ao comando jurídico,
constitucional e eleitoral.
Terceiro exemplo. A alínea j do mesmo inciso I, art. 1o, do
Estatuto, prevê como causas de inelegibilidade a condenação por (i) corrupção eleitoral, (ii) captação ilícita de sufrágio, (iii) doação,
captação ou gastos ilícitos de recursos para campanhas eleitorais e
(iv) condutas vedadas aos agentes públicos em campanhas eleitorais
que impliquem cassação do registro ou do diploma, pelo prazo de 8
(oito) anos a contar da eleição. Nessa hipótese, ter-se-ia uma
inelegibilidade-sanção, como a alínea d, ou uma inelegibilidade
como efeito secundário, como a alínea g?
A situação hipotética é mais sensível por uma razão: em
todas essas hipóteses da alínea j, assim como na AIJE, a competência
para processamento e julgamento recai sobre a Justiça Eleitoral, a
única investida de competência para reconhecer inelegibilidade.
Seria intuitivo, assim, que, ao menos em tese, à Justiça Eleitoral fosse
franqueada a possibilidade de reconhecer a inelegibilidade,
igualmente no próprio título condenatório, dos cidadãos que
incorreram na prática desses ilícitos insertos na alínea j. Não é assim
que acontece, porém.
Decerto, o juízo de procedência nas representações pela
prática dos ilícitos supracitados não habilita o magistrado a declarar
a inelegibilidade no bojo da decisão, forma distintamente do que
ocorre nas ações de investigação judicial eleitoral. Enquanto na AIJE
há previsão de cassação do registro ou diploma e da declaração de
restrição ao ius honorum, a condenação por captação ilícita de
sufrágio, por exemplo, acarreta a aplicação de multa e a cassação do
registro ou do diploma (LE, art. 41-A).
Já as representações por doação, captação ou gastos ilícitos
de recursos para campanhas eleitorais ensejam apenas, uma vez
procedentes os pedidos veiculados, a negação ou a cassação do
diploma (LE, art. 30-A, § 2o). A seu turno, eventual acolhimento do
pedido em representações por condutas vedadas autoriza a cassação
do registro ou diploma e a incidência de multa ao candidato
beneficiado, seja ele agente público ou não (LE. Art. 73, §§ 4o e 5o).
Portanto, não há previsão de inelegibilidade nas aludidas
representações, embora também sejam de competência da Justiça
Eleitoral. Repiso: a aferição do estado jurídico de inelegibilidade de
cidadão condenado pela prática dos ilícitos constantes da alínea j
somente ocorrerá se houver a formalização ulterior de registro de
candidatura. Nessa hipótese, então, estaríamos diante de uma
inelegibilidade reflexa, assemelhada à da alínea g.
E por que não é possível declarar, como sói ocorrer na
AIJE, a inelegibilidade dos condenados nessas representações no
título condenatório? A resposta é bem singela: por um aspecto de
natureza estritamente formal. De fato, o constituinte originário, em seu art. 14, § 9o,
gravou a veiculação de novas hipóteses de inelegibilidade com
reserva de lei complementar, de maneira que as representações por
captação ilícita de sufrágio, por captação ilícita de recursos em
campanhas eleitorais e por condutas vedadas encontram seu
fundamento normativo em legislação ordinária (i.e., na Lei das Eleições, arts. 41, 30-A e 73 a 77, respectivamente), e não em
legislação complementar.
Daí sobressai a inconsistência da tese que advoga que o art.
22, XIV (e seu fundamento de inelegibilidade, a alínea d) encerra
sanção: para trasmudar a natureza jurídica da alínea j – de
inelegibilidade reflexa para sanção –, seria suficiente que o
legislador infraconstitucional revogasse referidos ilícitos eleitorais
da Lei das Eleições e os realocasse topograficamente na Lei
Complementar no 64/90, porque, aí sim, estaria satisfeita a reserva
legal complementar exigida pelo art. 14, § 9o, da Constituição de
1988. Questiona-se, novamente: o fato de se alterar o diploma legal,
de lei ordinária para lei complementar, modifica a natureza do
instituto da inelegibilidade? A resposta, a meu sentir, é negativa.
Com efeito, a natureza jurídica de instituto não se adstringe à sua
posição topográfica em diploma legal.
Prossigo. Vejam, Excelências, o paradoxo gerado por essa
(pseudo) dicotomia entre sanção e efeitos secundários: hoje, por ser
proscrito assentar a inelegibilidade no título condenatório, ante o
aspecto formal de reserva de lei complementar acima demonstrado,
é perfeitamente possível cogitar da aplicação da alínea j a
condenações anteriores à Lei da Ficha Limpa, inclusive aquelas
passadas em julgado (por exemplo, em 2009), na medida em que se
trata de efeito secundário. Colaciono, por oportuno, precedente da
Corte Superior Eleitoral (AgR-REspe no 4944, rel. Min. Henrique
Neves), que confirma o que se acaba de afirmar:
“Registro. Inelegibilidade. Art. 1o, inciso I, alínea j, da Lei
Complementar no 64/90. Condenação. Representação por
captação ilícita de sufrágio.
1. A condenação por captação ilícita de sufrágio nas eleições
de 2008, por decisão transitada em julgado, atrai a incidência
da hipótese de inelegibilidade prevista no art. 1o, inciso I,
alínea j, da LC no 64/90, nas eleições de 2012.
(...)
4. Agravo regimental a que se nega provimento”.
(REspe no 4944, Rel. Min. Henrique Neves, Acórdão 07.11.2013).
Na espécie, a Recorrente fora condenada por captação
ilícita de sufrágio (art. 41-A da Lei n.° 9.504197), à sanção de
cassação do diploma e multa, tendo o trânsito em julgado em
primeira instância ocorrido, sem recurso, em 27.11.2008, sendo
quitado o débito referente à pena pecuniária em 22.3.2012. E, ao
decidir a controvérsia, o Ministro Henrique Neves entendeu que a
alínea j incidiria sobre fatos pretéritos, ainda que haja o trânsito em
julgado, em virtude da procedência do pedido formulado na
representação por captação ilícita de sufrágio, porquanto
consubstancia inelegibilidade como efeitos secundários (reflexos).
Não se cogitou, aqui, de qualificá-la como sanção. No mesmo
sentido, o Ministro Gilmar Mendes já vaticinou, em termos
peremptórios, que “[a] inelegibilidade referida no art. 1o, inciso I, alínea
j, da LC no 64/1990 não constitui sanção a ser imposta na decisão
judicial no caso de eventual procedência de ação de investigação
judicial eleitoral, mas possível efeito secundário da condenação,
verificável no momento em que o cidadão requerer registro de sua candidatura, desde que atendidos os requisitos exigidos. Dessa forma, não persiste o interesse recursal.” (AgR-REspe 504-51, rel. Min. Gilmar
Mendes, 30.04.2015).
Todavia, endossando o raciocínio que vem predominando
neste julgamento (o que admito apenas para ilustrar meu ponto), no
sentido de que a natureza sancionatória da inelegibilidade decorre
de sua previsão no título judicial, nos termos do art. 22, XIV,
bastaria proceder-se à modificação legislativa, (i.e., inelegibilidade
constaria no próprio título condenatório), para que a procedência
dos pedidos deduzidos em representação dos arts. 30-A, 41-A e 73 a
77 veiculasse uma inelegibilidade-sanção. Logo, interditar-se-ia a
incidência da alínea j a fatos pretéritos, quando a decisão judicial já
transitara em julgado, uma vez que haveria ultraje à coisa julgada e
à vedação à retroatividade de lei.
No caso concreto mencionado algures, o deslinde da
controvérsia seria diametralmente oposto pela simples razão de que,
agora (nessa situação hipotética), o legislador transferira os ilícitos
constantes da Lei das Eleições para a Lei Complementar no 64/90,
impondo a declaração de inelegibilidade. Repito: a natureza jurídica
da mesma causa de inelegibilidade seria modificada (de efeitos
secundários para sanção) por uma questão de natureza estritamente
formal (i.e., os ilícitos passaram a integrar uma lei complementar). É
exatamente essa a consequência das propostas que vêm
prevalecendo na Corte.
Ainda para confirmar minha proposta, proponho um
quarto, e último exemplo. Agora, trata-se de uma alteração
normativa em sentido inverso: retira-se o ilícito eleitoral da lei
complementar do art. 22 da LC no 64/90 e o tipifica em lei
ordinária. Vale dizer: nesse novo exemplo, a previsão de abuso de
poder econômico, político, de autoridade e de mídia (atualmente
prevista na LC no 64/90) se encontraria positivada na Lei das
Eleições, lei ordinária, portanto.
Caso essa alteração fosse levada a efeito, o comando
normativo de procedência na AIJE não poderia prever, em virtude
da imposição de reserva de lei complementar, a cominação, no título
condenatório, de inelegibilidade. Aqui se demonstra, novamente,
certa incoerência na tese da inelegibilidade como sanção. É que,
fosse esse o arranjo normativo, não estaríamos diante de uma causa
de inelegibilidade como efeitos reflexos (secundário), sem ostentar
natureza sancionatória.
Explico: art. 22, XIV, teria a mesma natureza jurídica que a
alínea j possui no regime atual (efeito reflexo), porque, ante a
vedação de o juiz consignar a inelegibilidade no título decisório, o
fundamento de validade da futura restrição à cidadania passiva
seria, reflexamente, o art. 1o, inciso I, alínea d. Como corolário,
poderia alcançar fatos pretéritos à edição da Lei Complementar no
135/2010, o que na esteira dos votos já proferidos não se afiguraria
viável.
Pois bem. Aludidos exemplos evidenciam certa fragilidade
argumentativa e alguma inconsistência teórica na tese vencedora,
até então, neste julgamento, segundo o qual o art. 22, XIV (ou seu
fundamento direto de inelegibilidade, a alínea d) encerraria(m)
sanção. Percebam que o cotejo entre o art. 22, XIV (e a alínea d) com
a alínea j, justamente porque bastante assemelhadas (a
inelegibilidade de ambas decorre de condenações pela prática de
ilícitos eleitorais), evidencia a ausência de distinção ontológica entre
referidas hipóteses: se uma introduz uma inelegibilidade como
efeito reflexo, caso da alínea j, inexiste razão jurídica que justifique
que a inelegibilidade do art. 22, XIV (e da alínea d) tenha caráter de
sanção. O que distingue, efetivamente, as duas causas restritivas é
que o art. 22, XIV, está previsto em lei complementar, circunstância
que autoriza o legislador a inserir a inelegibilidade no título judicial,
ao passo que as condenações que atraem a incidência da alínea j (i.e.,
captação ilícita de sufrágio, captação ilícita de recursos eleitorais,
corrupção eleitoral e conduta vedada), se situam em lei ordinária,
circunstância que obsta a possibilidade de, já no título condenatório,
reconhecer a inelegibilidade.
De fato, é irrelevante, para descortinar a natureza jurídica
da inelegibilidade, o fato de ela constar, ou não, de título judicial
condenatório. Isso porque, consoante exaustivamente demonstrado,
bastaria a modificação do diploma legislativo (i.e., alteração dos
ilícitos eleitorais de lei complementar para ordinária, e vice-versa) para extirpar a possibilidade de restrição da cidadania passiva da
parte dispositiva do decisum.
Também desabona a tese do Recorrente o fato de que
remanesceria, ainda, a inelegibilidade do cidadão condenado por
abuso de poder econômico ou político nos termos do art. 22, XIV,
ainda que o magistrado eleitoral não tenha cominado, na decisão, a
declaração de inelegibilidade. A restrição à cidadania passiva
encontraria lastro no art. 1o, inciso I, alínea d, de modo que, na
situação ventilada, não há como advogar a inelegibilidade como
sanção. Ela seria aferida somente em momento ulterior, quando da
eventual formalização de requerimento de registro de candidatura.
De duas, uma, então: ou bem todas as hipóteses do art. 1o,
inciso I, interpretadas sistematicamente com o art. 22, XIV, encerram
causas de inelegibilidades-sanções ou todas elas traduzem efeitos
reflexos de condenação anterior, entendimento a que adiro. O que
não se pode é reduzir o exame da natureza jurídica da
inelegibilidade da alínea d (ou de seu espelho, o art. 22, XIV)
focando estritamente no fato de ela constar no título judicial
condenatório, de ordem a criar uma (falsa) dicotomia no regime das
inelegibilidades (entre sanção e efeitos reflexos) que não encontra
guarida nem na Constituição nem na Lei Complementar no 64/90.
Na realidade, tem passado despercebido por parcela da
doutrina e jurisprudência o diagnóstico de que o art. 22, XIV, não
introduz hipótese autônoma de inelegibilidade, ainda que haja a previsão de constar do título judicial condenatório. Diversamente, o
preceito legal reproduz no rito procedimental da Ação de
Investigação Judicial Eleitoral (AIJE) a inelegibilidade da alínea d,
especificamente indicando os comandos impostos ao juiz nas
hipóteses de condenação por abuso de poder econômico, abuso de
poder de autoridade e pelo uso indevido dos meios de
comunicação (i.e., cassação do diploma e declaração de
inelegibilidade).
Todo esse conjunto de argumentos depõe contra esse
fictício regime dual de inelegibilidades constantes do inciso I do art.
1o e do art. 22, XIV. Todas elas traduzem efeitos reflexos de
condenação ulterior, pouco importando estarem, ou não, no título
judicial.
Há mais, porém.
IV. 2. A atecnia da redação do art. 22, XIV, da LC no 64/90, e a
existência de comandos antagônicos ao magistrado.
O segundo fundamento que infirma a tese majoritária até
então reside no fato de que o legislador ordinário incorreu em
manifesta atecnia ao afirmar que a inelegibilidade do art. 22, XIV,
encerraria sanção.
Com efeito, é de conhecimento elementar, na dogmática jurídica, a irrelevância do nomem iuris atribuído ao instituto legal, com vistas a subsidiar o intérprete na definição de sua natureza jurídica. É dizer: independentemente do rótulo legal, a natureza do
instituto é perquirida a partir da análise dos efeitos jurídicos que
efetivamente dele advêm.
Repare que, se assim não fosse, tal compreensão
acarretaria, no limite, admitir a hipótese absurda de, no futuro, o
Congresso Nacional editar uma nova lei complementar qualificando
juridicamente as causas de inelegibilidade como tributo. Ou mesmo
qualificar juridicamente toda e qualquer causa restritiva ao ius
honorum como pena (sanção), como fez em determinado trecho o art.
22, XIV. Se isso ocorresse, tais previsões não modificariam, de forma
alguma, a natureza jurídica do instituto: a inelegibilidade remanesce
como requisito negativo de adequação do indivíduo ao regime
jurídico do processo eleitoral. Trata-se, à evidência, de um estado
jurídico.
A irrelevância do nomen iuris para identificar a natureza
jurídica de um instituto restou precisamente demonstrada pelo
eminente Ministro Ricardo Lewandowski, à época integrante da
Corte Superior Eleitoral, no RO no 3128-94/MA, rel. Min. Hamilton
Carvalhido, julgado em 30.9.2010, ocasião em que vaticinou:
“(...) Nesse sentido, extraio da LC 64/90 que, quando se utiliza
a palavra ‘representação’ como instrumento para viabilizar a
abertura ‘de ação de investigação judicial’ (AIJE), a norma o
faz expressamente. É o caso do art. 22, caput, que dispõe a
respeito da ‘representação’ ajuizada especificamente para
“pedir abertura de investigação judicial para apurar uso
indevido, desvio ou abuso do poder econômico ou do poder
de autoridade, ou utilização indevida de veículos ou meios de
comunicação social”.
É de se notar, pois, a substancial diferença existente entre a
norma do art. 22 da LC 64/90 e o disposto na alínea d, em que
não há menção a nenhum pedido ou ação específica, mas
apenas às causas de pedir ‘abuso de poder político e
econômico’.
Corrobora com essa tese a interpretação sistemática da
legislação eleitoral, da qual se extrai que o termo
‘representação’ não revela o nomen juris de uma ação
específica.
Vejamos o que dispõe a Lei 9.504/1997, Lei das Eleições, a
respeito da chamada ‘representação’.Temos, em seu art. 96, o uso da palavra ‘representação’ para
definir a ação por meio da qual se apuram as violações dos seus
dispositivos.
Ocorre que dentre todas as vedações existentes na Lei das
Eleições não se encontra regulação quanto ao abuso de poder
político, econômico ou ao uso indevido dos meios de
comunicação. Tal regulação está prevista na LC 64/90.
Por consequência lógica, é indubitável que o vocábulo
‘representação’ contido no art. 1°, I, alínea d, da LC 64/90
deverá ser aplicado com significação que cumpra a finalidade
da norma, qual seja, afastar da vida pública políticos
condenados por abuso de poder político e econômico.
Nessa linha, reafirmo que ao termo ‘representação’ atribuo o
sentido de ‘ação’. Assim, quando o legislador refere-se à
hipótese de ‘representação’, devemos entender que ele não se
refere a um tipo específico de ação, mas faz alusão às ações
intentadas com o fim de se apurar abuso de poder econômico
ou político.
Essa conclusão é reforçada pela análise da natureza das ações
cujo objeto é apurar e sancionar o abuso de poder: ação de
investigação judicial eleitoral (AIJE), ação de impugnação de
mandato eletivo (AIME) e recurso contra expedição de
diploma (RCED). Todas servem à apuração de abuso de
poder, alcançadas, portanto, pelo art. 1, I, alínea d.
Verifico que a AIJE, disciplinada no art. 22 da LC 64/90, é a
única em que a Justiça Eleitoral declara a inelegibilidade no
corpo da condenação (art. 22, XIV"). – grifei
Aliás, essa técnica de interpretação também não é estranha
ao Supremo Tribunal Federal. Quando da edição do Enunciado da
Súmula no 670, esta Suprema Corte asseverou que o serviço de
iluminação pública não pode ser remunerado mediante taxa. Daí
por que em nada altera a natureza jurídica do instituto o fato de
qualificar aquela exação como “taxa”.
Há mais: a literalidade do art. 22, XIV, não encampa a tese
de que se trata de inelegibilidade-sanção. É que o referido
dispositivo apresenta – e impõe – dois comandos contraditórios ao
magistrado, em eventual condenação por abuso de poder político e
econômico: de um lado, determina que seja declarada a
inelegibilidade, o que pressupõe que essa situação jurídica preexiste
e está apenas sendo reconhecida judicialmente. Tratar-se-ia, aqui, de
chancelar a inelegibilidade como efeito secundário de eventual
condenação em AIJE; e, por outro lado, comina a sanção de
inelegibilidade, pressupondo que é a sentença que constituirá esse
novo estado jurídico. Aqui, cuidar-se-ia de autêntica sanção. Ante a
constatação desse comando contraditório, é preciso buscar
elementos que emprestem coerência sistêmica à aludida causa de
cidadania passiva.
E, a meu sentir, a primeira opção (i.e., declaração de
inelegibilidade) é a que está em sintonia com a interpretação dada
pelo STF ao art. 1o, inciso I e suas alíneas, da LC no 64/90, com a
redação dada pela LC no 135/2010. De fato, o pronunciamento judicial da prática do abuso de poder econômico ou político já atrai
per se a declaração (e não a constituição) da inelegibilidade.
Em termos claros: o pretenso candidato condenado pelo
art. 22, XIV, ainda assim estaria inelegível por força da incidência
do art. 1o, I, d, da LC no 64/90, ainda que eventualmente a decisão
judicial não cominasse a sanção de inelegibilidade no título
judicial. É suficiente, para assentar a inelegibilidade, a prática
abusiva de poder. Por isso que afronta flagrantemente a lógica e
coerência interna do Estatuto das Inelegibilidades a exegese
segundo a qual o art. 22, XIV, consubstancia hipótese de
inelegibilidade-sanção.
Também, por esse fundamento, considero que a alínea d
não constitui hipótese de inelegibilidade-sanção.
IV. 3. A aproximação entre os regimes jurídicos da Ação de
Investigação Judicial Eleitoral e a Ação de Impugnação de Mandato
Eletivo.
O terceiro argumento se relaciona com a evolução que
caminha a jurisprudência do TSE nas hipóteses de condenação por
abuso de poder em ações de impugnação de mandato eletivo. Com a
aproximação dos regimes jurídicos da AIJE (que prevê a declaração
de inelegibilidade no título condenatório) e da AIME (que não
contempla tal imposição), deve-se questionar, também sob essa nova perspectiva, o caráter sancionatório da inelegibilidade encartada no art. 22, XIV. Convém, neste pormenor, tecer um breve inventário da
jurisprudência da Corte Superior Eleitoral a respeito do tema.
Nas eleições de 2012, a Corte Superior Eleitoral flertava
com a orientação fixada segundo a qual a condenação por abuso de
poder econômico em AIME não tinha o condão de atrair a
inelegibilidade, ex vi do art. 1o, inciso I, alínea d, da LC no 64/90.
Todavia, em julgado recente, RO no 29.659, a questão
jurídica foi posta novamente à apreciação da Corte. O relator
Ministro Gilmar Mendes, no julgamento do RO no 29.659, asseverou
que “não verific[a] fator razoável de diferenciação para concluir que está
inelegível o cidadão condenado por abuso de poder econômico, nas eleições
de 2008, em AIJE, enquanto está elegível que aquele condenado também por
abuso de poder no mesmo pleito, porém em AIME, pois, como se sabe,
ambas as ações têm o abuso como causa de pedir, tramitam no mesmo
procedimento (art. 22 da LC no 64/90) e acarretam idêntica consequência
jurídica – cassação de registro e de diploma –, desde que o abuso seja”.
E prossegue o eminente relator, afirmando que, “[d]e fato,
tanto a ação de investigação judicial eleitoral quanto a ação de impugnação
de mandato eletivo buscam tutelar justamente a normalidade e legitimidade
do pleito contra o abuso de poder econômico assim reconhecido pela Justiça
Eleitoral, razão pela qual as condenações por abuso nessas ações
podem acarretar a causa de inelegibilidade prevista no art. 1o,
inciso I, alínea d, da LC no 64/90.” (grifei) Na espécie, acompanhei o
eminente relator.
A despeito de a prática de abuso de poder estar veiculada
em instrumentos processuais distintos (AIJE e AIME), o Ministro
Gilmar Mendes, valendo-se dos elementos teleológico e sistemático,
reconheceu que eventual caracterização da conduta abusiva deve
atrair a incidência da inelegibilidade da alínea d.
A construção é demasiado inteligente porquanto vislumbra
que a declaração de inelegibilidade em AIME independe de
expressa previsão no art. 14, § 10, da Constituição. Assim é que
poderá a Justiça Eleitoral, em ulterior registro de candidatura,
declarar a inelegibilidade do pretenso candidato com lastro no art.
1o, I, d. Vale dizer: trata-se de efeito secundário da condenação em
AIME.
Referida tese, assinalo, já fora defendida anteriormente
pelos eminentes Ministros Ricardo Lewandowski e pelo Ministro
Dias Toffoli, em suas passagens pela Corte Eleitoral. De acordo com
o Ministro Ricardo Lewandowski, no RO no 3128-94/MA, rel. Min.
Hamilton Carvalhido, julgado em 30.9.2010:
“Verifico que a AIJE, disciplinada no art. 22 da LC 64/90, é a
única em que a Justiça Eleitoral declara a inelegibilidade no
corpo da condenação (art. 22, XIV).
(...)
[p]or ausência de previsão legal expressa, a jurisprudência do
TSE nunca cogitou em decretar a inelegibilidade no bojo da
AIME, de modo que sua consequência limitava-se à perda do
mandato. Precedentes: AgRg no REspe 26.314, Rel. Min. Caputo
Bastos, DJ 2213/2007; AI 4.203/MG, Rel. Min. Peçanha Martins.
Nota-se, no tocante à inelegibilidade, que a diferença entre as
ações residia no fato de que apenas a AIJE tinha como
consequência direta sua declaração.
Penso, contudo, que a partir da LC 135/2010 tais
consequências foram profundamente alteradas.
A jurisprudência anterior do TSE, que afirmava não ser possível
aplicar inelegibilidade como consequência na AIME, não mais
se sustenta diante das novas causas de inelegibilidade e do
disposto no art. 1o, I, d, da LC 64/90.
De fato, a inelegibilidade existirá como efeito natural da
condenação, seja em ação de impugnação de mandato eletivo
(AIME), seja em recurso contra expedição de diploma (RCED).
[...]
Reitero, pois, que apenas na hipótese de AIJE cabe à Justiça
Eleitoral declarar inelegibilidade na sentença ou no acórdão.
Entretanto, nos demais casos, incluindo aqueles em que se
apura o abuso, a inelegibilidade será consequência da
condenação.” – (grifei).
Já o eminente Ministro Dias Toffoli, no julgamento do
REspe no 10-62/BA, pontuou: “[p]or isso afirmo – já sinalizando àqueles
que vierem a se arriscar no ano que vem à eleição – que a partir do ano que
vem, sinto-me absolutamente liberado a aplicar o entendimento da Ministra
Nancy Andrighi e entender que a condenação em AIME também pode ser
objeto da alínea d da Lei Complementar n° 64/90.”.
À luz deste entendimento – correto, repito –, não mais
subsiste, sob o ângulo lógico-jurídico, a distinção entre, de um lado,
inelegibilidade como sanção (por constar do título judicial proferido
em AIJE), e, por outro, inelegibilidade como efeito secundário (por
não constar do título judicial proferido em AIME). Deveras, inexiste
declaração de inelegibilidade em títulos condenatórios nas ações de
impugnação de mandato eletivo: o dispositivo da decisão, se
procedente, apenas determinará a cassação (ou perda) do mandato eletivo. E só. A inelegibilidade, também aqui, somente será
pronunciada sem caso de futuro registro de candidatura.
Pois bem. Se mantida a diferenciação entre efeitos reflexos
e inelegibilidade-sanção, o Supremo Tribunal Federal produzirá
uma incongruência sistêmica na interpretação da natureza jurídica da
inelegibilidade que, com o respeito devido, não se sustenta: como
advogar que a inelegibilidade possui duas naturezas jurídicas (i.e.,
efeitos secundários ou natureza de sanção), quando existem dois
instrumentos processuais (i.e., AIME e AIJE) aptos a veicular a
mesma causa petendi (i.e., abuso de poder econômico), e cuja
condenação atrai as mesmas consequências jurídicas (i.e.,
inelegibilidade pelo mesmo fundamento – art. 1o, I, d)?
Parafraseando o Ministro Marco Aurélio, o sistema não fecharia.
Observem, na prática, essa incongruência: se esse mesmo
Recorrente tivesse em seu desfavor, além desse título condenatório
por AIJE transitada em julgado, outra condenação em decorrência
da procedência do pedido deduzido em AIME igualmente com
trânsito em julgado, teríamos, nos termos da fundamentação dos
votos já produzidos, de um lado, a vedação de declaração de
inelegibilidade-sanção para AIJE, porque supostamente fulminaria
a coisa julgada a proibição de retroatividade de leis mais gravosas,
e, por outro lado, poder-se-ia declarar a inelegibilidade como
efeito reflexo, com espeque na condenação em AIME, em razão da
incidência da alínea d, cujo prazo de 8 (oito) anos revelaria situação
de retrospectividade.
Mas não é só.
Além de se verificar a aproximação jurídico-processual
entre AIJE e AIME, a jurisprudência mais recente do TSE preconiza
que a alínea d é o fundamento normativo para reconhecer a
inelegibilidade em decorrência de condenação exclusivamente por
uso indevido dos meios de comunicação (efeitos reflexos ou
secundários), embora a literalidade da alínea d refira-se apenas a
abuso de poder político ou econômico. No RO no 971-50, a eminente
relatora Ministra Maria Thereza, adotando interpretação lógica e
sistemática, consignou que “a condenação fundamentada exclusivamente
na hipótese de uso indevido dos meios de comunicação, com fundamento no
art. 22, XIV, da LC no 64/90, atrai a incidência da inelegibilidade do art. 1o,
I, d”.
Na espécie, o Recorrente tivera seu registro indeferido em
razão de condenação, nos autos de ação de investigação judicial
eleitoral, pela prática de uso indevido dos meios de comunicação,
que reconhecera a restrição de sua cidadania passiva por 8 (oito)
anos. Ao apreciar o meritum causae recursal, a relatora consignou que
“[o] cotejo desta norma [art. 22, XIV] com o art. 1, I, d, por interpretação
lógica, leva à conclusão de que o abuso, de que trata a referida alínea, é o
abuso de poder - latu sensu -, sendo meramente exemplificativos os
adjetivos político ou econômico.”. E concluiu, sob o ângulo da
interpretação sistemática, que: “pelo que dispõe o art. 1, I, d, da LC n°
64/90, não há como se afastar do entendimento de que o legislador, ao prever esta hipótese de inelegibilidade, estava se referindo diretamente às situações do art. 22, XIV, da mesma Lei.”. É dizer: primeiro, examina-se
a existência, ou não, de título condenatório por abuso (econômico,
político, de mídia ou de autoridade), para, na sequência, aferir o
estado jurídico de elegibilidade, nos termos da alínea d. E tal
procedimento, como exaustivamente demonstrado, é característico
de hipóteses de inelegibilidade como efeitos secundários, e não
como sanção.
Resumindo: em todas as situações demonstradas, as
alíneas do art. 1o, inciso I, inclusive a alínea d, veiculam
inelegibilidade como efeitos reflexos ou secundários de uma
condenação em um título judicial (e.g., reconhecimento pela prática
de abuso de poder econômico ou por captação ilícita de sufrágio),
administrativo (e.g., demissão de servidor público) ou normativo
(e.g., decreto legislativo de desaprovação de contas). É preciso, no
mínimo, desconfiar que, dentro de um arranjo normativo como esse,
realmente exista uma única causa “excepcionalíssima” de
inelegibilidade que se revista de natureza sancionatória.
Por tais razões, afirmo peremptoriamente que a
inelegibilidade insculpida na alínea d (no inciso XIV do art. 22)
não constitui sanção: o reconhecimento do abuso de poder
econômico ou político somente produzirá reflexos na prática na
esfera jurídico-eleitoral do condenado se – e somente – houver a
formalização do registro, em situação exatamente idêntica às demais
causas de inelegibilidade constantes da Lei da Ficha Limpa. Com efeito, o art. 22, XIV, reproduz, no rito procedimental
da Ação de Investigação Judicial Eleitoral (AIJE), a inelegibilidade
da alínea d, especificamente indicando os comandos impostos ao
juiz nas hipóteses de condenação por abuso de poder econômico,
abuso de poder de autoridade e pelo uso indevido dos meios de
comunicação (i.e., cassação do registro ou do diploma e declaração
de inelegibilidade).
Reitera-se: no art. 1o, inciso I, e suas alíneas, elencam-se as
hipóteses restritivas ao ius honorum. No art. 22, que disciplina
normativamente o rito da ação de investigação judicial eleitoral,
tem-se a positivação, no inciso XIV, dos comandos impostos ao
magistrado sempre que reconhecer a prática pelo abuso de poder
econômico ou pelo desvio ou abuso de poder de autoridade ou pelo
uso indevido dos meios de comunicação. Nada mais.
Deve-se reconhecer, ademais, que o legislador
complementar adotou péssima técnica legislativa na confecção da
Lei no 64/90, o que não foi aperfeiçoado – ao contrário, o vício foi
exponenciado – com o advento da Lei Complementar no 135/2010.
Isso é facilmente percebido na própria dicção do art. 22, XIV: fala-se
ao mesmo tempo em (i) declarar inelegibilidade e (ii) cominar-lhe a
sanção de inelegibilidade. Além de aludir ao termo inelegibilidade por
duas vezes, circunstância que, por si só, já evidencia pouco apreço
pela boa técnica legislativa, os mandamentos são em si
contraditórios: o primeiro tem natureza declaratória e o segundo, constitutiva. Não se objeta que essa má qualidade do texto tem
contribuído para esse imbróglio hermenêutico e metodológico.
Como se percebe, não foi intenção do legislador emprestar
uma natureza de sanção à referida causa de inelegibilidade, razão
pela qual fazê-lo, pela via hermenêutica, enseja manifesta fraude à
teleologia ínsita ao instituto.
V. Conclusões.
Quid iuris: qual a consequência prática desse raciocínio até
aqui empreendido? É que toda a racionalidade subjacente ao
julgamento das ADCs no 29 e no 30 deve ser aplicada tout court ao
art. 22, XIV, e à alínea d (sobre a qual a Corte já se pronunciou). Do
ponto de vista da dogmática constitucional, a extensão dos prazos
de inelegibilidade do art. 22, XIV, da Lei da Ficha Limpa, justamente
porque não versa sanção, não revela ofensa à retroatividade máxima,
de ordem a fulminar a coisa julgada, mesmo após o exaurimento
dos 3 anos inicialmente consignados na decisão judicial passada em
julgado que reconhece a prática de poder político ou econômico
(reconhecimento este que, aí sim, faz exsurgir a inelegibilidade).
Trata-se, em vez disso, de exemplo acadêmico de retroatividade
inautêntica (ou retrospectividade).
Nesse sentido, peço vênia aos eminentes pares para
transcrever excerto do voto que proferi naquela ocasião:
“Como se sabe, a retroatividade autêntica é vedada pela Constituição
da República, como já muitas vezes reconhecido na jurisprudência
deste Tribunal. O mesmo não se dá com a retrospectividade, que,
apesar de semelhante, não se confunde com o conceito de
retroatividade mínima defendido por MATOS PEIXOTO e referido
no voto do eminente Ministro MOREIRA ALVES proferido no
julgamento da ADI 493 (j. 25.06.1992): enquanto nesta são alteradas,
por lei, as consequências jurídicas de fatos ocorridos anteriormente –
consequências estas certas e previsíveis ao tempo da ocorrência do
fato –, naquela a lei atribui novos efeitos jurídicos, a partir de sua
edição, a fatos ocorridos anteriormente.
A aplicabilidade da Lei Complementar n.o 135/10 a processo eleitoral
posterior à respectiva data de publicação é, à luz da distinção supra,
uma hipótese clara e inequívoca de retroatividade inautêntica, ao
estabelecer limitação prospectiva ao ius honorum (o direito de
concorrer a cargos eletivos) com base em fatos já ocorridos. A
situação jurídica do indivíduo – condenação por colegiado ou perda
de cargo público, por exemplo – estabeleceu-se em momento anterior,
mas seus efeitos perdurarão no tempo. Portanto, ainda que se
considere haver atribuição de efeitos, por lei, a fatos pretéritos, cuida-
se de hipótese de retrospectividade, já admitida na jurisprudência desta
Corte.
(...)
Em outras palavras, a elegibilidade é a adequação do indivíduo ao
regime jurídico – constitucional e legal complementar – do processo
eleitoral, consubstanciada no não preenchimento de requisitos
‘negativos’ (as inelegibilidades). Vale dizer, o indivíduo que tenciona
concorrer a cargo eletivo deve aderir ao estatuto jurídico eleitoral.
Portanto, a sua adequação a esse estatuto não ingressa no respectivo
patrimônio jurídico, antes se traduzindo numa relação ex lege
dinâmica.
É essa característica continuativa do enquadramento do cidadão na
legislação eleitoral, aliás, que também permite concluir pela validade
da extensão dos prazos de inelegibilidade, originariamente previstos
em 3 (três), 4 (quatro) ou 5 (cinco) anos, para 8 (oito) anos, nos casos
em que os mesmos encontram-se em curso ou já se encerraram. Em
outras palavras, é de se entender que, mesmo no caso em que o
indivíduo já foi atingido pela inelegibilidade de acordo com as
hipóteses e prazos anteriormente previstos na Lei Complementar no
64/90, esses prazos poderão ser estendidos – se ainda em curso – ou
mesmo restaurados para que cheguem a 8 (oito) anos, por força da lex
nova, desde que não ultrapassem esse prazo.
Explica-se: trata-se, tão-somente, de imposição de um novo requisito
negativo para a que o cidadão possa candidatar-se a cargo eletivo,
que não se confunde com agravamento de pena ou com bis in idem.
Observe-se, para tanto, que o legislador cuidou de distinguir claramente a inelegibilidade das condenações – assim é que, por
exemplo, o art. 1o, I, ‘e’, da Lei Complementar no 64/90 expressamente
impõe a inelegibilidade para período posterior ao cumprimento da pena.
Tendo em vista essa observação, haverá, em primeiro lugar, uma
questão de isonomia a ser atendida: não se vislumbra justificativa para
que um indivíduo que já tenha sido condenado definitivamente (uma
vez que a lei anterior não admitia inelegibilidade para condenações
ainda recorríveis) cumpra período de inelegibilidade inferior ao de
outro cuja condenação não transitou em julgado.
Em segundo lugar, não se há de falar em alguma afronta à coisa
julgada nessa extensão de prazo de inelegibilidade, nos casos em que
a mesma é decorrente de condenação judicial. Afinal, ela não significa
interferência no cumprimento de decisão judicial anterior: o Poder
Judiciário fixou a penalidade, que terá sido cumprida antes do
momento em que, unicamente por força de lei – como se dá nas
relações jurídicas ex lege –, tornou-se inelegível o indivíduo. A coisa
julgada não terá sido violada ou desconstituída.
Demais disso, tem-se, como antes exposto, uma relação jurídica
continuativa, para a qual a coisa julgada opera sob a cláusula rebus sic
stantibus. A edição da Lei Complementar no 135/10 modificou o
panorama normativo das inelegibilidades, de sorte que a sua
aplicação, posterior às condenações, não desafiaria a autoridade da
coisa julgada.” (grifos no original).
Se é escorreita a tese de que a inelegibilidade do art. 22,
XIV, da LC no 64/90 não é sanção, o que ficou exaustivamente
demonstrado ao longo do meu voto, inexiste lastro jurídico para
rejeitar o aumento de prazo de 3 para 8 anos a fatos pretéritos.
Em consequência, verificado o exaurimento do prazo de 3
(três) anos, previsto na redação originária do art. 22, XIV, por
decisão transitada em julgado, é perfeitamente possível que o
legislador infraconstitucional proceda ao aumento dos prazos, o
que impõe que o agente da conduta abusiva fique inelegível por
mais 5 (cinco) anos, totalizando os 8 (oito) anos, sem que isso
implique ofensa à coisa julgada, que se mantém incólume.
Com isso não se está a franquear que o legislador estaria
apto a estabelecer, a seu talante, sanções em franca inobservância
das garantias constitucionais. Somente se admite esse alargamento
dos prazos de inelegibilidade porquanto se parte da premissa de
que não se está diante de sanções ou penalidades. A inelegibilidade
consubstancia requisito negativo de adequação do indivíduo ao
regime jurídico do processo eleitoral.
Ao revés: consoante bem pontuou o Parquet federal, em seu
pronunciamento, devem ser expungidos do debate os argumentos
ad terrorem, no sentido de que o legislador, caso chancelássemos as
inovações da Lei da Ficha Limpa, estaria autorizado a criar prazos
mais alargados e desarrazoados. Se eventualmente o absurdo se
realizar, é mister dessa Suprema Corte, no exercício de sua
jurisdição constitucional, invalidar atos normativos que desafiem a
proporcionalidade, a razoabilidade e o abuso do poder de legislar.
Não é essa, porém, a hipótese sub examine.
Por essas razões, voto pelo DESPROVIMENTO do recurso
extraordinário.
1 Não se desconhece que o aludido projeto de lei iniciativa popular foi encampado por parlamentares, que assumiram sua “paternidade”.
2 Originalmente, o feito sub examine fora autuado como ARE, ao qual foi atribuído o no 785.068.

3 Indigitados preceitos devem ser interpretados sistematicamente com o art. 14 § 3o, inciso I, que impõe, a cidadania brasileira, nata ou naturalizada, como condição de elegibilidade.