sexta-feira, 6 de outubro de 2017

Voto do Min. Fux no RE 929670 quanto ao suposto conflito entre coisa julgada e aumento de prazos de inelegibilidade trazido pela Lei da Ficha Limpa

VOTO-VISTA
I. A Premissa Fundamental: a Lei da Ficha Limpa e sua relevância no fortalecimento das instituições democráticas.

Senhor MINISTRO LUIZ FUX: Senhor Presidente, Egrégia Corte, douta representante do Ministério Público Federal, ilustres advogados, demais presentes, inicio meu voto-vista afirmando que a Lei Complementar no 135/2010, cognominada de Lei da Ficha Limpa, cujo sentido e alcance estão em jogo nesses autos, representa um marco histórico no fortalecimento de nossas instituições democráticas.

Como de sabença, a Lei Complementar no 135/2010 resultou de intensa mobilização da sociedade civil organizada, capitaneada, dentre outros, pelo Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral, que formalizara projeto de lei junto à Câmara dos Deputados subscrito por mais de 1,3 milhão (um milhão e trezentos mil) cidadãos1. O propósito não poderia ser mais inequívoco: expungir da classe política pretensos candidatos que, por sua vida pregressa, tenham vilipendiado valores tão caros ao processo eleitoral, conforme se infere do art. 14, § 9o, da Lei Fundamental, como a ética, a moralidade e a probidade na gestão da coisa pública.

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Não é novidade que há muito a sociedade civil organizada reclama por ética e por moralidade no exercício desse munus público, que é tornar-se um representante eleito, um agente político. Para o cidadão, hoje é certo que a probidade é condição inarredável para a boa administração pública e, mais do que isso, que a corrupção e a desonestidade são as maiores travas ao desenvolvimento do país e ao resgate da credibilidade dos agentes políticos perante a sociedade.

Mas não é só aos agentes eleitos que é imposta a estrita observância dessas diretrizes de alinhamento moral. Aos pretensos candidatos também é exigida a retidão ética, mediante o enquadramento de suas ações pregressas a aludidos cânones de probidade. Um cidadão que corrompe para ingressar no poder, a fim de investir-se em um mandato eletivo, também é capaz de corromper para perpetuar-se nele.

Se é correta, consoante hodiernos estudos de ciência política, a premissa de que existe um descolamento entre a classe política e a sociedade civil, esse distanciamento deve ser creditado, em larga medida, (i) à ausência de uma cultura verdadeiramente republicana e transparente na condução da res pública e (ii) ao promíscuo, nefasto e aviltante patrimonialismo entranhado em nossas instituições e em nossas relações sociais, já denunciado outrora pelo saudoso Raymundo Faoro, em seu clássico Os Donos do Poder, que proporciona a apropriação indevida da coisa pública pelos agentes eleitos ou por seus apadrinhados e a confusão perene e igualmente deletéria entre o público e o privado, apanágios que lamentavelmente ainda vicejam nos dias atuais.

Não por outra razão foi pensado um novo arranjo normativo para extirpar, ou, ao menos, amainar, práticas abusivas de poder econômico, político, de malversação de recursos públicos, levadas a efeito por quem esteja no poder político ou por quem pretende vir a exercê-lo.

Ao editar a LC no 135/2010, e estabelecer critérios mais rigorosos para o exercício do ius honorum, o legislador ordinário não apenas prestigiou a vontade popular soberana, mas também [o legislador] deu concretude aos cânones constitucionais de moralidade e de ética, encartados no art. 14, § 9o, da Constituição de 1988 que devem presidir a competição eleitoral e pautar a conduta do agente político quando da gestão da res publica. Dito de outro modo, o Congresso Nacional, ancorado na legítima manifestação popular de 1,3 milhão de eleitores, erigiu um sólido Estatuto da Moralidade do Processo Eleitoral, na feliz expressão cunhada pelo eminente Ministro, e amigo, Joaquim Barbosa.

Aqui residem as premissas mais relevantes, e que devem nortear o deslinde da presente controvérsia: os mandamentos constitucionais de moralidade e de ética. Com efeito, a Lei da Ficha Limpa materializa, no plano infraconstitucional, a vontade do constituinte de 1988, notadamente o de revisão (ECR no 4/94), que expressamente autorizou o estabelecimento de novas hipóteses de inelegibilidade, no afã de salvaguardar a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato, considerada a vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta.

Trata-se, à evidência, de arranjo institucional do processo político delineado pelo titular do poder constituinte que claramente optou por prestigiar, nesta quadra histórica, a moralidade no prélio eleitoral, desenho este que teve ressonância no Congresso Nacional, e que fora chancelada pela Suprema Corte, enquanto intérpretes autorizados da Carta Fundamental da República.

Como dito, o próprio constituinte vislumbrou que a competição eleitoral não pode prescindir da observância de certos padrões mínimos de conduta por parte de seus players (e futuros agentes políticos): não se há de falar em legitimidade democrática quando as condutas atribuídas aos pretensos candidatos e aos titulares dos mandatos eletivos amesquinham os patamares éticos e morais erigidos pelo legislador ordinário.

Eis a consequência inescapável: impõe-se que esta Suprema Corte repudie interpretações das causas de inelegibilidade que fustiguem essa teleologia subjacente. É preciso, pois, cautela para com a fixação de exegeses que vulnerem o escopo da norma, sob pena de encerrar verdadeira fraude à manifestação legítima e soberana da sociedade brasileira, que contou, repiso, com a aquiescência dos membros do Parlamento.

Penso, nesse pormenor, que não podemos transigir com tentativas obtusas de implodir, pela via hermenêutica, os propósitos republicanos e moralizadores, nortes da edição da Lei da Ficha Limpa, que propugnam por ética e transparência na gestão da coisa pública e observância à legitimidade e à lisura das eleições.

Com a Lei da Ficha Limpa, a sociedade deu um importante passo rumo à moralização do processo eleitoral. Agora, esta Suprema Corte deve ter a preocupação de, ao apreciar a quaestio debatida, não olvidar-se dos comandos constitucionais inafastáveis para a participação no processo político, máxime porque insculpidos no art. 14, § 9o, da Carta de 1988, e evitando endossar interpretação às cláusulas de inelegibilidade excessivamente dissonante a estes valores fundamentais, sob pena de solapar esse projeto político de moralização da política e das eleições.
Feitas essas brevíssimas considerações, passo a examinar a questão de fundo.

II. Breve relato dos fatos.


No caso sub examine, cuida-se de recurso extraordinário (RE no 929.6702), interposto por DILERMANDO FERREIRA SOARES, com espeque no art. 102, III, a, da Constituição da República, em face de aresto proferido pelo Tribunal Superior Eleitoral, que mantivera o indeferimento do pedido de registro de candidatura formalizado pelo ora Recorrente.

Na origem, o juízo a quo indeferira o pedido de registro de candidatura de DILERMANDO FERREIRA SOARES, ante a incidência da inelegibilidade inserta no art. 1o, inciso I, alínea d, da Lei Complementar no 64/90 (inelegibilidade em decorrência da condenação por abuso de poder econômico ou político).

Na espécie, o Recorrente fora condenado em ação de investigação judicial eleitoral (AIJE), com a cassação de seu diploma e a declaração de inelegibilidade por 3 (três) anos, pela prática de abuso de poder econômico. Aludida decisão transitou em julgado em 2004, sendo certo que teve seu registro indeferido, em razão do aumento do prazo da inelegibilidade constante do art. 1o, inciso I, alínea d, de 3 (três) para 8 (oito) anos, levada a efeito pela Lei Complementar no 135/2010.
Contra aludida decisão, foi interposto recurso eleitoral, ao qual foi negado provimento pelo Tribunal Regional Eleitoral da Bahia.

2 Originalmente, o feito sub examine fora autuado como ARE, ao qual foi atribuído o no 785.068.



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Sobreveio, então, a interposição de recurso especial eleitoral, distribuído à relatoria da Ministra Laurita Vaz (REspe no 348-11). Em seu decisum monocrático, a Ministra Relatora negou seguimento ao apelo nobre eleitoral, nos termos da jurisprudência iterativa da Corte Superior Eleitoral, segundo a qual, [a]inda que se trate de condenação transitada em julgado, em representação por abuso do poder econômico ou político referente a eleição anterior à vigência da Lei Complementar n° 135/2010, incide a inelegibilidade prevista na alínea d do inciso I do art. 1° da Lei Complementar n° 64/90, cujo prazo passou a ser de oito anos.”. Manteve-se, portanto, o indeferimento do registro de candidatura.

Irresignado, o Recorrente interpôs agravo regimental, desprovido, por unanimidade, pelo TSE. Eis a ementa do acórdão:
ELEIÇÃO 2012. REGISTRO DE CANDIDATURA INELEGIBILIDADE ART. 1°, INCISO I, ALÍNEA d, DA LC N° 64/90, COM AS ALTERAÇÕES DA LC N° 135/2010. APLICAÇÃO DA NOVA DISCIPLINA A FATOS ANTERIORES. POSSIBILIDADE. PRAZO. OITO ANOS. CONTAGEM. OFENSA PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA NÃO OCORRÊNCIA DESPROVIMENTO.
1. Este Tribunal firmou orientação de que a causa de inelegibilidade prevista na alínea d do inciso I do art. 1° da Lei Complementar no 64/90 incide a partir da eleição da qual resultou a condenação até o final dos oito anos seguintes, independentemente da data em que se realizar a eleição (REspe
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na 165-12/SC, Rel. Ministro ARNALDO VERSIANI, publicado na sessão de 25.9.2012).
2. O fato de a condenação nos autos de representação por abuso de poder econômico ou político haver transitado em julgado, ou mesmo haver transcorrido o prazo da sanção de três anos, imposta por força de condenação pela Justiça Eleitoral, não afasta a incidência da inelegibilidade constante da alínea d do inciso I do art. 1o da Lei Complementar na 64/90, cujo prazo passou a ser de oito anos.
3. A inelegibilidade assim como a falta de qualquer das condições de elegibilidade nada mais são do que restrições temporárias à possibilidade de qualquer pessoa se candidatar e devem ser aferidas a cada eleição, de acordo com as regras aplicáveis no pleito, não constituindo essa análise ofensa ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito, à coisa julgada ou à segurança jurídica.
4. Agravo regimental a que se nega provimento.

Foram opostos ainda embargos de declaração, os quais foram rejeitados.

Na sequência, foi interposto recurso extraordinário.

A eminente Ministra Cármen Lúcia, no exercício da Presidência daquela Corte Superior, inadmitiu o apelo nobre. Entendeu Sua Excelência que [o] acórdão do Tribunal Superior Eleitoral, portanto, não negou vigência aos dispositivos da Constituição da República, mas, em vez disso, aplicou o entendimento do Supremo Tribunal Federal consolidado no julgamento das Ações Diretas de Constitucionalidade n. 29 e n. 30 e na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4578, da re1atoria do Ministro Luiz Fux, segundo as quais as modificações introduzidas pela Lei Complementar n. 135/2010 se aplicam a fatos anteriores, verificáveis no processo de registro de candidatura.”.

Interposto agravo nos próprios autos em face do despacho de inadmissibilidade (ARE no 785.068), o relator Ministro Ricardo Lewandowski, em um primeiro momento, negou seguimento ao recurso.

Diante disso, o Recorrente interpôs agravo regimental. Na sessão de 07.10.2015, o Tribunal deu provimento ao agravo regimental, para admitir o recurso extraordinário, reconhecendo a repercussão geral da matéria.

Em suas razões, o Recorrente alega o ultraje ao art. 5o, incisos XXXV (juízo natural), XXXVI (direito adquirido e coisa julgada) e ao XL (irretroatividade da lei penal e retroatividade da lei penal mais benéfica).

Em preliminar formal e fundamentada, aduz a existência de repercussão geral. No mérito, advoga a impossibilidade de aplicação retroativa, ao seu caso concreto, da ampliação do prazo de inelegibilidade de 3 (três) para 8 (oito) anos, uma vez que já tinha se verificado o exaurimento do prazo cominado no título judicial condenatório em 2007.
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Articula, ainda, que os princípios da segurança jurídica e da irretroatividade de lei mais gravosa exigiriam a aplicação do prazo de 3 (três) anos previsto na redação originária do art. 1o, inciso I, alínea d, do Estatuto das Inelegibilidades.

Em abono de sua pretensão, assevera a higidez de seu estado jurídico de elegibilidade na data do prélio de 2012. É que, ainda que se admita a incidência in casu do aumento do prazo para 8 (oito) anos, o termo a quo para a contagem de sua restrição à cidadania passiva deveria ser a data do pleito das eleições municipais de 2004 (03.10.2014) e teria como data final o dia 03.10.2012, razão pela qual ter-se-ia o exaurimento da inelegibilidade em momento anterior à data fixada para as eleições locais naquele ano (07.10.2012).

Foram apresentadas contrarrazões.

Em seu pronunciamento, o Ministério Público Federal opinou pelo desprovimento do recurso extraordinário. Eis a ementa da manifestação ministerial:
RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL E ELEITORAL. REPERCUSSÃO GERAL. TEMA 860. LEI COMPLEMENTAR 64/1990, ARTIGO 1o, INCISO I, ALÍNEA D. NOVA REDAÇÃO. APLICAÇÃO A FATOS ANTERIORES À ALTERAÇÃO. POSSIBILIDADE. INELEGIBILIDADE REFLEXA. ESCOAMENTO DO PRAZO DE JNELEGIBIDADE- SANÇÃO. CIRCUNSTÂNCIA INDIFERENTE. OFENSA A COISA JULGADA. INEXISTÊNCIA, PROVIMENTO DO RECURSO.
1 - Tese de Repercussão Geral (Tema 860): Aplica-se o prazo de oito anos de inelegibilidade por abuso de poder previsto no art. 1o, I, d, da Lei Complementar 64/1990, na redação dada pela Lei Complementar 135/2010, às situações anteriores à modificação de sua redação, mesmo que, por força de decisão transitada em julgado, tenha sido aplicada e integralmente cumprida sanção de inelegibilidade por três anos, pois diversos os impedimentos decorrentes, de inelegibilidade reflexa e de inelegibilidade-sanção.
2 - Não há retroatividade na consideração de fatos passados pra declarar-se presentes as inelegibilidades reflexas previstas no inciso I do art. 1o da Lei Complementar 64/1990, ainda que ocorridos antes da edição da lei que os desvalorou ou que ampliou o prazo do impedimento, pois tais inelegibilidades não possuem a natureza de sanção, sendo aferidas no momento do pedido de registro da candidatura, de forma contemporânea a cada processo eleitoral, e não existe direito adquirido a regime jurídico.
3 - Não há afronta à coisa julgada em razão da aplicação do prazo de inelegibilidade de oito anos, previsto no art. 1o, I, ‘d, da Lei Complementar 64/1990, mesmo quando já escoada a sanção de inelegibilidade fixada no total de três anos em decisão judicial em representação, na forma do art. 22, inciso XIV, da mesma lei, porque são diversos os impedimentos, tratando-se o primeiro de inelegibilidade reflexa decorrente de desvalor da conduta declarada existente no pronunciamento pretoriano e não de sanção, nos mesmos moldes das previsões das demais alíneas do referido inciso, calcando-se em requisitos diversos dos exigidos para a inelegibilidade-sanção.
4 - Não é possível conhecer da discussão acerca do dia inicial da contagem do prazo de inelegibilidade de oito anos previsto no art. 1o, inciso I, alínea ‘d, da Lei Complementar 6411990, dado ter sede exclusivamente infraconstitucional;
5 - Parecer pelo desprovimento do recurso extraordinário.

Na assentada de 16.11.2015, o eminente Relator deu provimento ao recurso extraordinário, para deferir o registro de candidatura de DILERMANDO FERREIRA SOARES. Em sua fundamentação, o Ministro Ricardo Lewandowski assentou que o prazo de inelegibilidade de 3 (três) anos estabelecido pela Justiça Eleitoral nos autos de ação de investigação judicial eleitoral na redação originária do art. 22, XIV, da LC no 64/94 consubstanciaria hipótese distinta do art. 1o, inciso I, alínea d, do mesmo diploma legal.

Justamente por isso, a “sanção” de inelegibilidade seria parte integrante da decisão de procedência, de forma que, quando já integralmente cumprida, estaria acobertada pela garantia da coisa julgada. Como consequência, aludido prazo, decorrente da cominação judicial de inelegibilidade, integraria, de forma indissociável e definitiva, o título judicial que atingira o Recorrente, diante de seu trânsito em julgado. Antecipando seu voto, o Ministro Gilmar Mendes acompanhou as conclusões do Ministro Relator.

Na ocasião, pedi vistas dos autos para debruçar-me com mais vagar sobre a tese jurídica debatida nos autos, notadamente porque tenho me manifestado em sentido diametralmente oposto àquele esposado pelos eminentes Ministros que me antecederam. Amadurecidas minhas reflexões, trago-as à apreciação dos eminentes pares.

III. Delimitação da controvérsia jurídica travada.

Consoante se depreende do relatório, a controvérsia jurídica travada no recurso sub examine cinge-se em perquirir se há, ou não, ofensa às garantias constitucionais da coisa julgada e da irretroatividade da lei gravosa, ex vi, respectivamente, do art. 5o, XXXVI e XL, nas hipóteses de aumento de prazo de 3 (três) para 8 (oito) anos da inelegibilidade prevista no art. 22, XIV, da LC no 64/90, em razão de condenação por abuso de poder político ou econômico, quando (i) se verificara o trânsito em julgado e (ii) ocorrera o exaurimento do prazo de 3 anos, tal como disposto na redação primeva do indigitado preceito.
Para o Ministro Relator e o Ministro Gilmar Mendes, que o acompanhou, referida ampliação do prazo, levada a cabo pela Lei da Ficha Limpa, encerraria hipótese de retroatividade máxima, o art.1o, inciso I, da LC no 64/90, a restrição ao ius honorum do art. 22, XIV, ostentando natureza de sanção.

Com o respeito devido e merecido, ponho-me a divergir.

O regime jurídico das condições de elegibilidade e das hipóteses de inelegibilidade se ancora em critérios político- legislativos que possuem racionalidades e fundamentos diversos, conforme comprovam 4 (quatro) exemplos que passo a indicar: há normas restritivas ao exercício do ius honorum cujo telos subjacente consiste em preservar a soberania nacional, mediante o reconhecimento da inelegibilidade absoluta de estrangeiros (CRFB/88, art. 14, § 2o c/c § 4o)3. Além disso, os conscritos, já que submetidos a regime de hierarquia e disciplina, estariam mais suscetíveis a obedecerem ordens superiores, razão por que também foram qualificados juridicamente como inalistáveis e absolutamente inelegíveis (CRFB/88, art. 14, § 2o c/c § 4o). De efeito, é imperioso que o exercício do mandato político-eletivo não sofra ingerências externas que possam asfixiar a independência e a autonomia do agente político no desempenho de seu mister.

Adotou-se, ainda, por mais atávico que seja, critério calcado em aspectos cognitivos para o desempenho do direito de ser votado (i.e., inelegibilidade absoluta de analfabetos), a teor do art. 14, § 4o, da CRFB/88. Por fim, proscreveu-se a perpetuação de indivíduos ou o continuísmo de grupos familiares no exercício do poder político (art. 14, §§ 5o e 7o, da CRFB/88). Como se percebe, inexiste uniformidade nas razões metajurídicas que justificam a veiculação de hipóteses de inelegibilidade.

Justamente essa multiplicidade de fundamentos que autoriza o legislador complementar a introduzir novas causas de inelegibilidade. Com efeito, há as causas de inelegibilidade que potencializam os princípios constitucionais da moralidade e da probidade, como sói ocorrer nas hipóteses encartadas na Lei da Ficha Limpa. E, não há qualquer novidade, no fato de que, se incorrer em quaisquer dessas causas, o cidadão terá seu direito de capacidade eleitoral passiva interditado, ainda que temporariamente.

Esse raciocínio nos conduz a uma primeira conclusão: as circunstâncias acima elencadas interditam per se que se defenda com fortes tintas a tese segundo a qual a inelegibilidade possua cariz sancionatório, em quaisquer de suas causas de incidência, inclusive naquelas tipificadas na Constituição e na Lei da Ficha Limpa. Do contrário, estar-se-ia admitindo, ilustrativamente, que a ordem constitucional pune os indivíduos que sequer tiveram acesso à educação elementar (caso dos analfabetos), ao imputar-lhes a vedação ao exercício do seu direito político passivo. Cuida-se [as inelegibilidades] de simples opções político-legislativas, alicerçadas em fundamentos diversos, que limitam o acesso dos cidadãos aos cargos eletivos.

A propósito, no julgamento das ADCs no 29 e no 30, o Plenário da Suprema Corte assentou, por maioria, que a inelegibilidade ostenta natureza jurídica de requisito negativo de adequação do indivíduo ao regime jurídico do processo eleitoral. À guisa deste entendimento, rechaçou-se veementemente o caráter sancionatório ou punitivo das hipóteses de inelegibilidade veiculadas na Lei Complementar no 64/90.

Diante disso, é de se indagar: existe no ordenamento jurídico pátrio a figura da inelegibilidade-sanção? Refaço a pergunta noutros termos: o fato de o legislador complementar utilizar, no art. 22, XIV, o vocábulo “sanção” para referir-se à causa de inelegibilidade transmuda a natureza jurídica do instituto, de sorte a infirmar as conclusões a que chegou a Corte quando do julgamento das ADCs no 29 e no 30 acerca da natureza jurídica das hipóteses de inelegibilidade? Esses questionamentos se afiguram essenciais ao deslinde da discussão, na medida em que, a depender da resposta fornecida, altera-se a compreensão de que o aumento do prazo de 3 para 8 anos prevista na Lei da Ficha Limpa implicaria retroatividade máxima proscrita pela Constituição.

E a resposta a este questionamento, antecipa-se, é negativa. Minhas conclusões estão alicerçadas em três fundamentos.
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IV. Mérito.

IV. 1. Da inexistência de um duplo regime jurídico de inelegibilidades no art. 1o, inciso I, da LC no 64/90: todas as hipóteses gravadas traduzem efeitos reflexos, e não sanções.

Em primeiro lugar, afigura-se irrelevante, no afã de perquirir a natureza jurídica do art. 22, XIV c/c o art. 1o, inciso I, alínea d, a circunstância de a inelegibilidade constar, ou não, expressamente do título judicial na condenação pela prática de abuso de poder econômico ou político.

Já assentei em sede doutrinária (FUX, Luiz. Novos Paradigmas do Direito Eleitoral. Belo Horizonte: Fórum, 2016, p. 186), e em diversas manifestações no TSE, que a decisão condenatória, nos termos do art. 22, XIV, que declara ou constitui a inelegibilidade, se assemelha, quanto aos efeitos jurídico-eleitorais, às demais hipóteses das alíneas do art. 1o, I.

Em termos mais singelos: a decisão que reconhece a inelegibilidade, a teor do art. 22, XIV, somente produzirá seus efeitos na esfera jurídico-eleitoral do condenado, se, e somente se, este vier a formalizar registro de candidatura em eleições vindouras, ou em recurso contra a expedição do diploma, em se tratando de inelegibilidades infraconstitucionais supervenientes. Daí por que inexiste fundamento, do ponto de vista lógico-jurídico, para pugnar pela distinção de regimes jurídicos entre o art. 22, XIV, e seu espelho no art. 1o a alínea d (as quais seriam tratadas como sanção), e para as demais alíneas (as quais seriam tratadas como efeito secundário).4 (quatro) exemplos corroboram a tese proposta. Os dois primeiros rejeitam o caráter sancionatório da inelegibilidade do art. 22, XIV, na medida em que a produção de seus efeitos jurídico- eleitorais se assemelha ao dos demais tipos constantes do art. 1o, inciso I. Daí que não há que se insistir nessa dualidade de regimes jurídicos de inelegibilidades. Os dois finais (3o e 4o) evidenciam, ainda mais, que essa suposta natureza sancionatória do art. 22, XIV (tese defendida pelos eminentes Ministros que já votaram) seria facilmente modificada para efeito secundário por uma simples alteração legislativa: seria suficiente que o art. 22, XIV, previsto em LC, fosse tipificado em lei ordinária. Assim, ter natureza de sanção ou não dependeria da lei em que estivesse tipificado o ilícito eleitoral. Passemos, a seguir, a cada um deles.

Primeiro exemplo. Imagine-se que determinado agente público tenha suas contas rejeitadas, em que reste devidamente demonstrada a irregularidade insanável que configure ato doloso de improbidade administrativa por decisão irrecorrível do órgão competente. No exemplo aventado, esse agente público estará inelegível nos termos do art. 1o, I, alínea g, da LC no 64/90, em decorrência de estarem presentes todos os requisitos legais. A despeito de a restrição ao ius honorum não constar formalmente da decisão de rejeição de contas, o agente público estará, sim, repiso, inelegível.
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Todavia, esse estado jurídico de inelegibilidade somente será aferido se o agente público protocolizar seu registro de candidatura, ocasião em que a restrição à cidadania passiva produzirá seus efeitos jurídico-eleitorais. Não formalizado o requerimento de registro de candidatura, a inelegibilidade permanece latente, e não surtirá efeitos, para fins eleitorais, na esfera jurídica do agente público. E ninguém objeta que, na situação hipotética ventilada, se trata de hipótese de inelegibilidade como efeito secundário.

Pois bem. Situação similar ocorre quando há a condenação por abuso de poder econômico ou político em sede de ação de investigação judicial eleitoral (LC no 64/90, art. 22, XIV). E, aqui, passo ao segundo exemplo.
Imagine-se, agora, que determinado indivíduo tenha sido condenado nos termos do art. 22, XIV (abuso de poder econômico). O magistrado declarará a inelegibilidade na própria decisão judicial, além da cassação do registro ou diploma. Entretanto, e tal como na hipótese da alínea “g”, os efeitos dessa inelegibilidade permanecem em estado de latência [e esse é o ponto a ser considerado], não obstante a menção ao termo inelegibilidade constar do título judicial.

Eventuais efeitos jurídico-eleitorais dependem, por conseguinte, do requerimento de registro de candidatura do cidadão condenado. Sem essa formalização do registro, descabe cogitar de produção de efeitos imediatos da inelegibilidade, para fins eleitorais, ainda que expressamente assentada na decisão judicial.

Indaga-se, mais uma vez: e se o magistrado não cominar a inelegibilidade no título judicial, de forma a assentar apenas e tão só a cassação do diploma? O indivíduo condenado pela prática abusiva ainda assim permanece inelegível, ou, diante dessa omissão do juiz, manteria seu estado jurídico de elegibilidade incólume? Evidentemente, a ausência de menção no título condenatório não elide a inelegibilidade, a qual seria reconhecida pela incidência do art. 1o, inciso I, alínea d, da LC no 64/90.

Noutros termos, a declaração de inelegibilidade, com espeque no art. 22, XIV, não produz quaisquer efeitos jurídico- eleitorais imediatos na esfera jurídica do condenado. Diversamente da pena de cassação do diploma (esta, sim, produz efeitos imediatos), a existência, ou não, de causa restritiva do ius honorum somente será aferida em ulterior formalização de registro de candidatura pelo condenado. Até lá, os efeitos da declaração de inelegibilidade ficam potencialmente sobrestados, em nada alterando o estado jurídico do cidadão condenado. Em suma: a inelegibilidade, também quando constante do título, se traduz como a mera inadequação subjetiva ao comando jurídico, constitucional e eleitoral.

Terceiro exemplo. A alínea j do mesmo inciso I, art. 1o, do Estatuto, prevê como causas de inelegibilidade a condenação por (i) corrupção eleitoral, (ii) captação ilícita de sufrágio, (iii) doação, captação ou gastos ilícitos de recursos para campanhas eleitorais e (iv) condutas vedadas aos agentes públicos em campanhas eleitorais que impliquem cassação do registro ou do diploma, pelo prazo de 8 (oito) anos a contar da eleição. Nessa hipótese, ter-se-ia uma inelegibilidade-sanção, como a alínea d, ou uma inelegibilidade como efeito secundário, como a alínea g?

A situação hipotética é mais sensível por uma razão: em todas essas hipóteses da alínea j, assim como na AIJE, a competência para processamento e julgamento recai sobre a Justiça Eleitoral, a única investida de competência para reconhecer inelegibilidade. Seria intuitivo, assim, que, ao menos em tese, à Justiça Eleitoral fosse franqueada a possibilidade de reconhecer a inelegibilidade, igualmente no próprio título condenatório, dos cidadãos que incorreram na prática desses ilícitos insertos na alínea j. Não é assim que acontece, porém.

Decerto, o juízo de procedência nas representações pela prática dos ilícitos supracitados não habilita o magistrado a declarar a inelegibilidade no bojo da decisão, forma distintamente do que ocorre nas ações de investigação judicial eleitoral. Enquanto na AIJE há previsão de cassação do registro ou diploma e da declaração de restrição ao ius honorum, a condenação por captação ilícita de sufrágio, por exemplo, acarreta a aplicação de multa e a cassação do registro ou do diploma (LE, art. 41-A).
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Já as representações por doação, captação ou gastos ilícitos de recursos para campanhas eleitorais ensejam apenas, uma vez procedentes os pedidos veiculados, a negação ou a cassação do diploma (LE, art. 30-A, § 2o). A seu turno, eventual acolhimento do pedido em representações por condutas vedadas autoriza a cassação do registro ou diploma e a incidência de multa ao candidato beneficiado, seja ele agente público ou não (LE. Art. 73, §§ 4o e 5o).

Portanto, não há previsão de inelegibilidade nas aludidas representações, embora também sejam de competência da Justiça Eleitoral. Repiso: a aferição do estado jurídico de inelegibilidade de cidadão condenado pela prática dos ilícitos constantes da alínea j somente ocorrerá se houver a formalização ulterior de registro de candidatura. Nessa hipótese, então, estaríamos diante de uma inelegibilidade reflexa, assemelhada à da alínea g.

E por que não é possível declarar, como sói ocorrer na AIJE, a inelegibilidade dos condenados nessas representações no título condenatório? A resposta é bem singela: por um aspecto de natureza estritamente formalDe fato, o constituinte originário, em seu art. 14, § 9o, gravou a veiculação de novas hipóteses de inelegibilidade com reserva de lei complementar, de maneira que as representações por captação ilícita de sufrágio, por captação ilícita de recursos em campanhas eleitorais e por condutas vedadas encontram seu fundamento normativo em legislação ordinária (i.e., na Lei das Eleições, arts. 41, 30-A e 73 a 77, respectivamente), e não em legislação complementar.

Daí sobressai a inconsistência da tese que advoga que o art. 22, XIV (e seu fundamento de inelegibilidade, a alínea d) encerra sanção: para trasmudar a natureza jurídica da alínea j de inelegibilidade reflexa para sanção , seria suficiente que o legislador infraconstitucional revogasse referidos ilícitos eleitorais da Lei das Eleições e os realocasse topograficamente na Lei Complementar no 64/90, porque, aí sim, estaria satisfeita a reserva legal complementar exigida pelo art. 14, § 9o, da Constituição de 1988. Questiona-se, novamente: o fato de se alterar o diploma legal, de lei ordinária para lei complementar, modifica a natureza do instituto da inelegibilidade? A resposta, a meu sentir, é negativa. Com efeito, a natureza jurídica de instituto não se adstringe à sua posição topográfica em diploma legal.

Prossigo. Vejam, Excelências, o paradoxo gerado por essa (pseudo) dicotomia entre sanção e efeitos secundários: hoje, por ser proscrito assentar a inelegibilidade no título condenatório, ante o aspecto formal de reserva de lei complementar acima demonstrado, é perfeitamente possível cogitar da aplicação da alínea j a condenações anteriores à Lei da Ficha Limpa, inclusive aquelas passadas em julgado (por exemplo, em 2009), na medida em que se trata de efeito secundário. Colaciono, por oportuno, precedente da Corte Superior Eleitoral (AgR-REspe no 4944, rel. Min. Henrique Neves), que confirma o que se acaba de afirmar:
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Registro. Inelegibilidade. Art. 1o, inciso I, alínea j, da Lei Complementar no 64/90. Condenação. Representação por captação ilícita de sufrágio.
1. A condenação por captação ilícita de sufrágio nas eleições de 2008, por decisão transitada em julgado, atrai a incidência da hipótese de inelegibilidade prevista no art. 1o, inciso I, alínea j, da LC no 64/90, nas eleições de 2012.


(...)
4. Agravo regimental a que se nega provimento.
(REspe no 4944, Rel. Min. Henrique Neves, Acórdão 07.11.2013).


Na espécie, a Recorrente fora condenada por captação ilícita de sufrágio (art. 41-A da Lei n.° 9.504197), à sanção de cassação do diploma e multa, tendo o trânsito em julgado em primeira instância ocorrido, sem recurso, em 27.11.2008, sendo quitado o débito referente à pena pecuniária em 22.3.2012. E, ao decidir a controvérsia, o Ministro Henrique Neves entendeu que a alínea j incidiria sobre fatos pretéritos, ainda que haja o trânsito em julgado, em virtude da procedência do pedido formulado na representação por captação ilícita de sufrágio, porquanto consubstancia inelegibilidade como efeitos secundários (reflexos). Não se cogitou, aqui, de qualificá-la como sanção. No mesmo sentido, o Ministro Gilmar Mendes já vaticinou, em termos peremptórios, que [a] inelegibilidade referida no art. 1o, inciso I, alínea j, da LC no 64/1990 não constitui sanção a ser imposta na decisão judicial no caso de eventual procedência de ação de investigação judicial eleitoral, mas possível efeito secundário da condenação, verificável no momento em que o cidadão requerer registro de sua candidatura, desde que atendidos os requisitos exigidos. Dessa forma, não persiste o interesse recursal.(AgR-REspe 504-51, rel. Min. Gilmar Mendes, 30.04.2015).

Todavia, endossando o raciocínio que vem predominando neste julgamento (o que admito apenas para ilustrar meu ponto), no sentido de que a natureza sancionatória da inelegibilidade decorre de sua previsão no título judicial, nos termos do art. 22, XIV, bastaria proceder-se à modificação legislativa, (i.e., inelegibilidade constaria no próprio título condenatório), para que a procedência dos pedidos deduzidos em representação dos arts. 30-A, 41-A e 73 a 77 veiculasse uma inelegibilidade-sanção. Logo, interditar-se-ia a incidência da alínea j a fatos pretéritos, quando a decisão judicial já transitara em julgado, uma vez que haveria ultraje à coisa julgada e à vedação à retroatividade de lei.

No caso concreto mencionado algures, o deslinde da controvérsia seria diametralmente oposto pela simples razão de que, agora (nessa situação hipotética), o legislador transferira os ilícitos constantes da Lei das Eleições para a Lei Complementar no 64/90, impondo a declaração de inelegibilidade. Repito: a natureza jurídica da mesma causa de inelegibilidade seria modificada (de efeitos secundários para sanção) por uma questão de natureza estritamente formal (i.e., os ilícitos passaram a integrar uma lei complementar). É exatamente essa a consequência das propostas que vêm prevalecendo na Corte.

Ainda para confirmar minha proposta, proponho um quarto, e último exemplo. Agora, trata-se de uma alteração normativa em sentido inverso: retira-se o ilícito eleitoral da lei complementar do art. 22 da LC no 64/90 e o tipifica em lei ordinária. Vale dizer: nesse novo exemplo, a previsão de abuso de poder econômico, político, de autoridade e de mídia (atualmente prevista na LC no 64/90) se encontraria positivada na Lei das Eleições, lei ordinária, portanto.
Caso essa alteração fosse levada a efeito, o comando normativo de procedência na AIJE não poderia prever, em virtude da imposição de reserva de lei complementar, a cominação, no título condenatório, de inelegibilidade. Aqui se demonstra, novamente, certa incoerência na tese da inelegibilidade como sanção. É que, fosse esse o arranjo normativo, não estaríamos diante de uma causa de inelegibilidade como efeitos reflexos (secundário), sem ostentar natureza sancionatória.

Explico: art. 22, XIV, teria a mesma natureza jurídica que a alínea j possui no regime atual (efeito reflexo), porque, ante a vedação de o juiz consignar a inelegibilidade no título decisório, o fundamento de validade da futura restrição à cidadania passiva seria, reflexamente, o art. 1o, inciso I, alínea d. Como corolário, poderia alcançar fatos pretéritos à edição da Lei Complementar no 135/2010, o que na esteira dos votos já proferidos não se afiguraria viável.
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Pois bem. Aludidos exemplos evidenciam certa fragilidade argumentativa e alguma inconsistência teórica na tese vencedora, até então, neste julgamento, segundo o qual o art. 22, XIV (ou seu fundamento direto de inelegibilidade, a alínea d) encerraria(m) sanção. Percebam que o cotejo entre o art. 22, XIV (e a alínea d) com a alínea j, justamente porque bastante assemelhadas (a inelegibilidade de ambas decorre de condenações pela prática de ilícitos eleitorais), evidencia a ausência de distinção ontológica entre referidas hipóteses: se uma introduz uma inelegibilidade como efeito reflexo, caso da alínea j, inexiste razão jurídica que justifique que a inelegibilidade do art. 22, XIV (e da alínea d) tenha caráter de sanção. O que distingue, efetivamente, as duas causas restritivas é que o art. 22, XIV, está previsto em lei complementar, circunstância que autoriza o legislador a inserir a inelegibilidade no título judicial, ao passo que as condenações que atraem a incidência da alínea j (i.e., captação ilícita de sufrágio, captação ilícita de recursos eleitorais, corrupção eleitoral e conduta vedada), se situam em lei ordinária, circunstância que obsta a possibilidade de, já no título condenatório, reconhecer a inelegibilidade.

De fato, é irrelevante, para descortinar a natureza jurídica da inelegibilidade, o fato de ela constar, ou não, de título judicial condenatório. Isso porque, consoante exaustivamente demonstrado, bastaria a modificação do diploma legislativo (i.e., alteração dos ilícitos eleitorais de lei complementar para ordinária, e vice-versa) para extirpar a possibilidade de restrição da cidadania passiva da parte dispositiva do decisum.

Também desabona a tese do Recorrente o fato de que remanesceria, ainda, a inelegibilidade do cidadão condenado por abuso de poder econômico ou político nos termos do art. 22, XIV, ainda que o magistrado eleitoral não tenha cominado, na decisão, a declaração de inelegibilidade. A restrição à cidadania passiva encontraria lastro no art. 1o, inciso I, alínea d, de modo que, na situação ventilada, não há como advogar a inelegibilidade como sanção. Ela seria aferida somente em momento ulterior, quando da eventual formalização de requerimento de registro de candidatura.

De duas, uma, então: ou bem todas as hipóteses do art. 1o, inciso I, interpretadas sistematicamente com o art. 22, XIV, encerram causas de inelegibilidades-sanções ou todas elas traduzem efeitos reflexos de condenação anterior, entendimento a que adiro. O que não se pode é reduzir o exame da natureza jurídica da inelegibilidade da alínea d (ou de seu espelho, o art. 22, XIV) focando estritamente no fato de ela constar no título judicial condenatório, de ordem a criar uma (falsa) dicotomia no regime das inelegibilidades (entre sanção e efeitos reflexos) que não encontra guarida nem na Constituição nem na Lei Complementar no 64/90.

Na realidade, tem passado despercebido por parcela da doutrina e jurisprudência o diagnóstico de que o art. 22, XIV, não introduz hipótese autônoma de inelegibilidade, ainda que haja a previsão de constar do título judicial condenatório. Diversamente, o preceito legal reproduz no rito procedimental da Ação de Investigação Judicial Eleitoral (AIJE) a inelegibilidade da alínea d, especificamente indicando os comandos impostos ao juiz nas hipóteses de condenação por abuso de poder econômico, abuso de poder de autoridade e pelo uso indevido dos meios de comunicação (i.e., cassação do diploma e declaração de inelegibilidade).

Todo esse conjunto de argumentos depõe contra esse fictício regime dual de inelegibilidades constantes do inciso I do art. 1o e do art. 22, XIV. Todas elas traduzem efeitos reflexos de condenação ulterior, pouco importando estarem, ou não, no título judicial.

Há mais, porém.

IV. 2. A atecnia da redação do art. 22, XIV, da LC no 64/90, e a existência de comandos antagônicos ao magistrado.

O segundo fundamento que infirma a tese majoritária até então reside no fato de que o legislador ordinário incorreu em manifesta atecnia ao afirmar que a inelegibilidade do art. 22, XIV, encerraria sanção.

Com efeito, é de conhecimento elementar, na dogmática jurídica, a irrelevância do nomem iuris atribuído ao instituto legal, com vistas a subsidiar o intérprete na definição de sua natureza jurídica. É dizer: independentemente do rótulo legal, a natureza do instituto é perquirida a partir da análise dos efeitos jurídicos que efetivamente dele advêm.

Repare que, se assim não fosse, tal compreensão acarretaria, no limite, admitir a hipótese absurda de, no futuro, o Congresso Nacional editar uma nova lei complementar qualificando juridicamente as causas de inelegibilidade como tributo. Ou mesmo qualificar juridicamente toda e qualquer causa restritiva ao ius honorum como pena (sanção), como fez em determinado trecho o art. 22, XIV. Se isso ocorresse, tais previsões não modificariam, de forma alguma, a natureza jurídica do instituto: a inelegibilidade remanesce como requisito negativo de adequação do indivíduo ao regime jurídico do processo eleitoral. Trata-se, à evidência, de um estado jurídico.

A irrelevância do nomen iuris para identificar a natureza jurídica de um instituto restou precisamente demonstrada pelo eminente Ministro Ricardo Lewandowski, à época integrante da Corte Superior Eleitoral, no RO no 3128-94/MA, rel. Min. Hamilton Carvalhido, julgado em 30.9.2010, ocasião em que vaticinou:
“(...) Nesse sentido, extraio da LC 64/90 que, quando se utiliza a palavra ‘representaçãocomo instrumento para viabilizar a abertura ‘de ação de investigação judicial’ (AIJE), a norma o faz expressamente. É o caso do art. 22, caput, que dispõe a respeito da ‘representaçãoajuizada especificamente para pedir abertura de investigação judicial para apurar uso indevido, desvio ou abuso do poder econômico ou do poder de autoridade, ou utilização indevida de veículos ou meios de comunicação social.
É de se notar, pois, a substancial diferença existente entre a norma do art. 22 da LC 64/90 e o disposto na alínea d, em que não há menção a nenhum pedido ou ação específica, mas apenas às causas de pedir ‘abuso de poder político e econômico’.
Corrobora com essa tese a interpretação sistemática da legislação eleitoral, da qual se extrai que o termo representaçãonão revela o nomen juris de uma ação específica.
Vejamos o que dispõe a Lei 9.504/1997, Lei das Eleições, a respeito da chamada ‘representação.Temos, em seu art. 96, o uso da palavra ‘representaçãopara definir a ação por meio da qual se apuram as violações dos seus dispositivos.
Ocorre que dentre todas as vedações existentes na Lei das Eleições não se encontra regulação quanto ao abuso de poder político, econômico ou ao uso indevido dos meios de comunicação. Tal regulação está prevista na LC 64/90.
Por consequência lógica, é indubitável que o vocábulo representaçãocontido no art. 1°, I, alínea d, da LC 64/90 deverá ser aplicado com significação que cumpra a finalidade da norma, qual seja, afastar da vida pública políticos condenados por abuso de poder político e econômico.
Nessa linha, reafirmo que ao termo ‘representação’ atribuo o sentido de ‘ação. Assim, quando o legislador refere-se à hipótese de ‘representação, devemos entender que ele não se refere a um tipo específico de ação, mas faz alusão às ações intentadas com o fim de se apurar abuso de poder econômico ou político.
Essa conclusão é reforçada pela análise da natureza das ações cujo objeto é apurar e sancionar o abuso de poder: ação de investigação judicial eleitoral (AIJE), ação de impugnação de mandato eletivo (AIME) e recurso contra expedição de diploma (RCED). Todas servem à apuração de abuso de poder, alcançadas, portanto, pelo art. 1, I, alínea d.
Verifico que a AIJE, disciplinada no art. 22 da LC 64/90, é a única em que a Justiça Eleitoral declara a inelegibilidade no corpo da condenação (art. 22, XIV"). grifei
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Aliás, essa técnica de interpretação também não é estranha ao Supremo Tribunal Federal. Quando da edição do Enunciado da Súmula no 670, esta Suprema Corte asseverou que o serviço de iluminação pública não pode ser remunerado mediante taxa. Daí por que em nada altera a natureza jurídica do instituto o fato de qualificar aquela exação como “taxa”.

Há mais: a literalidade do art. 22, XIV, não encampa a tese de que se trata de inelegibilidade-sanção. É que o referido dispositivo apresenta e impõe dois comandos contraditórios ao magistrado, em eventual condenação por abuso de poder político e econômico: de um lado, determina que seja declarada a inelegibilidade, o que pressupõe que essa situação jurídica preexiste e está apenas sendo reconhecida judicialmente. Tratar-se-ia, aqui, de chancelar a inelegibilidade como efeito secundário de eventual condenação em AIJE; e, por outro lado, comina a sanção de inelegibilidade, pressupondo que é a sentença que constituirá esse novo estado jurídico. Aqui, cuidar-se-ia de autêntica sanção. Ante a constatação desse comando contraditório, é preciso buscar elementos que emprestem coerência sistêmica à aludida causa de cidadania passiva.

E, a meu sentir, a primeira opção (i.e., declaração de inelegibilidade) é a que está em sintonia com a interpretação dada pelo STF ao art. 1o, inciso I e suas alíneas, da LC no 64/90, com a redação dada pela LC no 135/2010. De fato, o pronunciamento judicial da prática do abuso de poder econômico ou político já atrai per se a declaração (e não a constituição) da inelegibilidade.

Em termos claros: o pretenso candidato condenado pelo art. 22, XIV, ainda assim estaria inelegível por força da incidência do art. 1o, I, d, da LC no 64/90, ainda que eventualmente a decisão judicial não cominasse a sanção de inelegibilidade no título judicial. É suficiente, para assentar a inelegibilidade, a prática abusiva de poder. Por isso que afronta flagrantemente a lógica e coerência interna do Estatuto das Inelegibilidades a exegese segundo a qual o art. 22, XIV, consubstancia hipótese de inelegibilidade-sanção.

Também, por esse fundamento, considero que a alínea d não constitui hipótese de inelegibilidade-sanção.

IV. 3. A aproximação entre os regimes jurídicos da Ação de Investigação Judicial Eleitoral e a Ação de Impugnação de Mandato Eletivo.

O terceiro argumento se relaciona com a evolução que caminha a jurisprudência do TSE nas hipóteses de condenação por abuso de poder em ações de impugnação de mandato eletivo. Com a aproximação dos regimes jurídicos da AIJE (que prevê a declaração de inelegibilidade no título condenatório) e da AIME (que não contempla tal imposição), deve-se questionar, também sob essa nova perspectiva, o caráter sancionatório da inelegibilidade encartada no art. 22, XIV. Convém, neste pormenor, tecer um breve inventário da jurisprudência da Corte Superior Eleitoral a respeito do tema.

Nas eleições de 2012, a Corte Superior Eleitoral flertava com a orientação fixada segundo a qual a condenação por abuso de poder econômico em AIME não tinha o condão de atrair a inelegibilidade, ex vi do art. 1o, inciso I, alínea d, da LC no 64/90.

Todavia, em julgado recente, RO no 29.659, a questão jurídica foi posta novamente à apreciação da Corte. O relator Ministro Gilmar Mendes, no julgamento do RO no 29.659, asseverou que “não verific[a] fator razoável de diferenciação para concluir que está inelegível o cidadão condenado por abuso de poder econômico, nas eleições de 2008, em AIJE, enquanto está elegível que aquele condenado também por abuso de poder no mesmo pleito, porém em AIME, pois, como se sabe, ambas as ações têm o abuso como causa de pedir, tramitam no mesmo procedimento (art. 22 da LC no 64/90) e acarretam idêntica consequência jurídica cassação de registro e de diploma –, desde que o abuso seja”.

E prossegue o eminente relator, afirmando que, “[d]e fato, tanto a ação de investigação judicial eleitoral quanto a ação de impugnação de mandato eletivo buscam tutelar justamente a normalidade e legitimidade do pleito contra o abuso de poder econômico assim reconhecido pela Justiça Eleitoral, razão pela qual as condenações por abuso nessas ações podem acarretar a causa de inelegibilidade prevista no art. 1o, inciso I, alínea d, da LC no 64/90.(grifei) Na espécie, acompanhei o eminente relator.
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A despeito de a prática de abuso de poder estar veiculada em instrumentos processuais distintos (AIJE e AIME), o Ministro Gilmar Mendes, valendo-se dos elementos teleológico e sistemático, reconheceu que eventual caracterização da conduta abusiva deve atrair a incidência da inelegibilidade da alínea d.

A construção é demasiado inteligente porquanto vislumbra que a declaração de inelegibilidade em AIME independe de expressa previsão no art. 14, § 10, da Constituição. Assim é que poderá a Justiça Eleitoral, em ulterior registro de candidatura, declarar a inelegibilidade do pretenso candidato com lastro no art. 1o, I, d. Vale dizer: trata-se de efeito secundário da condenação em AIME.

Referida tese, assinalo, já fora defendida anteriormente pelos eminentes Ministros Ricardo Lewandowski e pelo Ministro Dias Toffoli, em suas passagens pela Corte Eleitoral. De acordo com o Ministro Ricardo Lewandowski, no RO no 3128-94/MA, rel. Min. Hamilton Carvalhido, julgado em 30.9.2010:

“Verifico que a AIJE, disciplinada no art. 22 da LC 64/90, é a única em que a Justiça Eleitoral declara a inelegibilidade no corpo da condenação (art. 22, XIV).
(...)

[p]or ausência de previsão legal expressa, a jurisprudência do TSE nunca cogitou em decretar a inelegibilidade no bojo da AIME, de modo que sua consequência limitava-se à perda do mandato. Precedentes: AgRg no REspe 26.314, Rel. Min. Caputo Bastos, DJ 2213/2007; AI 4.203/MG, Rel. Min. Peçanha Martins. Nota-se, no tocante à inelegibilidade, que a diferença entre as ações residia no fato de que apenas a AIJE tinha como consequência direta sua declaração.
Penso, contudo, que a partir da LC 135/2010 tais consequências foram profundamente alteradas.

A jurisprudência anterior do TSE, que afirmava não ser possível aplicar inelegibilidade como consequência na AIME, não mais se sustenta diante das novas causas de inelegibilidade e do disposto no art. 1o, I, d, da LC 64/90.

De fato, a inelegibilidade existirá como efeito natural da condenação, seja em ação de impugnação de mandato eletivo (AIME), seja em recurso contra expedição de diploma (RCED). [...]
Reitero, pois, que apenas na hipótese de AIJE cabe à Justiça Eleitoral declarar inelegibilidade na sentença ou no acórdão. Entretanto, nos demais casos, incluindo aqueles em que se apura o abuso, a inelegibilidade será consequência da condenação.” – (grifei).

Já o eminente Ministro Dias Toffoli, no julgamento do REspe no 10-62/BA, pontuou: [p]or isso afirmo já sinalizando àqueles que vierem a se arriscar no ano que vem à eleição que a partir do ano que vem, sinto-me absolutamente liberado a aplicar o entendimento da Ministra Nancy Andrighi e entender que a condenação em AIME também pode ser objeto da alínea d da Lei Complementar n° 64/90.”.

À luz deste entendimento correto, repito , não mais subsiste, sob o ângulo lógico-jurídico, a distinção entre, de um lado, inelegibilidade como sanção (por constar do título judicial proferido em AIJE), e, por outro, inelegibilidade como efeito secundário (por não constar do título judicial proferido em AIME). Deveras, inexiste declaração de inelegibilidade em títulos condenatórios nas ações de impugnação de mandato eletivo: o dispositivo da decisão, se procedente, apenas determinará a cassação (ou perda) do mandato eletivo. E só. A inelegibilidade, também aqui, somente será pronunciada sem caso de futuro registro de candidatura.

Pois bem. Se mantida a diferenciação entre efeitos reflexos e inelegibilidade-sanção, o Supremo Tribunal Federal produzirá uma incongruência sistêmica na interpretação da natureza jurídica da inelegibilidade que, com o respeito devido, não se sustenta: como advogar que a inelegibilidade possui duas naturezas jurídicas (i.e., efeitos secundários ou natureza de sanção), quando existem dois instrumentos processuais (i.e., AIME e AIJE) aptos a veicular a mesma causa petendi (i.e., abuso de poder econômico), e cuja condenação atrai as mesmas consequências jurídicas (i.e., inelegibilidade pelo mesmo fundamento art. 1o, I, d)? Parafraseando o Ministro Marco Aurélio, o sistema não fecharia.

Observem, na prática, essa incongruência: se esse mesmo Recorrente tivesse em seu desfavor, além desse título condenatório por AIJE transitada em julgado, outra condenação em decorrência da procedência do pedido deduzido em AIME igualmente com trânsito em julgado, teríamos, nos termos da fundamentação dos votos já produzidos, de um lado, a vedação de declaração de inelegibilidade-sanção para AIJE, porque supostamente fulminaria a coisa julgada a proibição de retroatividade de leis mais gravosas, e, por outro lado, poder-se-ia declarar a inelegibilidade como efeito reflexo, com espeque na condenação em AIME, em razão da incidência da alínea d, cujo prazo de 8 (oito) anos revelaria situação de retrospectividade.
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Mas não é só.
Além de se verificar a aproximação jurídico-processual entre AIJE e AIME, a jurisprudência mais recente do TSE preconiza que a alínea d é o fundamento normativo para reconhecer a inelegibilidade em decorrência de condenação exclusivamente por uso indevido dos meios de comunicação (efeitos reflexos ou secundários), embora a literalidade da alínea d refira-se apenas a abuso de poder político ou econômico. No RO no 971-50, a eminente relatora Ministra Maria Thereza, adotando interpretação lógica e sistemática, consignou que a condenação fundamentada exclusivamente na hipótese de uso indevido dos meios de comunicação, com fundamento no art. 22, XIV, da LC no 64/90, atrai a incidência da inelegibilidade do art. 1o, I, d.

Na espécie, o Recorrente tivera seu registro indeferido em razão de condenação, nos autos de ação de investigação judicial eleitoral, pela prática de uso indevido dos meios de comunicação, que reconhecera a restrição de sua cidadania passiva por 8 (oito) anos. Ao apreciar o meritum causae recursal, a relatora consignou que [o] cotejo desta norma [art. 22, XIV] com o art. 1, I, d, por interpretação lógica, leva à conclusão de que o abuso, de que trata a referida alínea, é o abuso de poder - latu sensu -, sendo meramente exemplificativos os adjetivos político ou econômico.. E concluiu, sob o ângulo da interpretação sistemática, que: pelo que dispõe o art. 1, I, d, da LC n° 64/90, não há como se afastar do entendimento de que o legislador, ao prever esta hipótese de inelegibilidade, estava se referindo diretamente às situações do art. 22, XIV, da mesma Lei.. É dizer: primeiro, examina-se a existência, ou não, de título condenatório por abuso (econômico, político, de mídia ou de autoridade), para, na sequência, aferir o estado jurídico de elegibilidade, nos termos da alínea d. E tal procedimento, como exaustivamente demonstrado, é característico de hipóteses de inelegibilidade como efeitos secundários, e não como sanção.

Resumindo: em todas as situações demonstradas, as alíneas do art. 1o, inciso I, inclusive a alínea d, veiculam inelegibilidade como efeitos reflexos ou secundários de uma condenação em um título judicial (e.g., reconhecimento pela prática de abuso de poder econômico ou por captação ilícita de sufrágio), administrativo (e.g., demissão de servidor público) ou normativo (e.g., decreto legislativo de desaprovação de contas). É preciso, no mínimo, desconfiar que, dentro de um arranjo normativo como esse, realmente exista uma única causa “excepcionalíssima” de inelegibilidade que se revista de natureza sancionatória.

Por tais razões, afirmo peremptoriamente que a inelegibilidade insculpida na alínea d (no inciso XIV do art. 22) não constitui sanção: o reconhecimento do abuso de poder econômico ou político somente produzirá reflexos na prática na esfera jurídico-eleitoral do condenado se e somente houver a formalização do registro, em situação exatamente idêntica às demais causas de inelegibilidade constantes da Lei da Ficha Limpa. Com efeito, o art. 22, XIV, reproduz, no rito procedimental da Ação de Investigação Judicial Eleitoral (AIJE), a inelegibilidade da alínea d, especificamente indicando os comandos impostos ao juiz nas hipóteses de condenação por abuso de poder econômico, abuso de poder de autoridade e pelo uso indevido dos meios de comunicação (i.e., cassação do registro ou do diploma e declaração de inelegibilidade).

Reitera-se: no art. 1o, inciso I, e suas alíneas, elencam-se as hipóteses restritivas ao ius honorum. No art. 22, que disciplina normativamente o rito da ação de investigação judicial eleitoral, tem-se a positivação, no inciso XIV, dos comandos impostos ao magistrado sempre que reconhecer a prática pelo abuso de poder econômico ou pelo desvio ou abuso de poder de autoridade ou pelo uso indevido dos meios de comunicação. Nada mais.

Deve-se reconhecer, ademais, que o legislador complementar adotou péssima técnica legislativa na confecção da Lei no 64/90, o que não foi aperfeiçoado ao contrário, o vício foi exponenciado com o advento da Lei Complementar no 135/2010. Isso é facilmente percebido na própria dicção do art. 22, XIV: fala-se ao mesmo tempo em (i) declarar inelegibilidade e (ii) cominar-lhe a sanção de inelegibilidade. Além de aludir ao termo inelegibilidade por duas vezes, circunstância que, por si só, já evidencia pouco apreço pela boa técnica legislativa, os mandamentos são em si contraditórios: o primeiro tem natureza declaratória e o segundo, constitutiva. Não se objeta que essa má qualidade do texto tem contribuído para esse imbróglio hermenêutico e metodológico.

Como se percebe, não foi intenção do legislador emprestar uma natureza de sanção à referida causa de inelegibilidade, razão pela qual fazê-lo, pela via hermenêutica, enseja manifesta fraude à teleologia ínsita ao instituto.

V. Conclusões.

Quid iuris: qual a consequência prática desse raciocínio até aqui empreendido? É que toda a racionalidade subjacente ao julgamento das ADCs no 29 e no 30 deve ser aplicada tout court ao art. 22, XIV, e à alínea d (sobre a qual a Corte já se pronunciou). Do ponto de vista da dogmática constitucional, a extensão dos prazos de inelegibilidade do art. 22, XIV, da Lei da Ficha Limpa, justamente porque não versa sanção, não revela ofensa à retroatividade máxima, de ordem a fulminar a coisa julgada, mesmo após o exaurimento dos 3 anos inicialmente consignados na decisão judicial passada em julgado que reconhece a prática de poder político ou econômico (reconhecimento este que, aí sim, faz exsurgir a inelegibilidade). Trata-se, em vez disso, de exemplo acadêmico de retroatividade inautêntica (ou retrospectividade).

Nesse sentido, peço vênia aos eminentes pares para transcrever excerto do voto que proferi naquela ocasião:

“Como se sabe, a retroatividade autêntica é vedada pela Constituição da República, como já muitas vezes reconhecido na jurisprudência deste Tribunal. O mesmo não se dá com a retrospectividade, que, apesar de semelhante, não se confunde com o conceito de retroatividade mínima defendido por MATOS PEIXOTO e referido no voto do eminente Ministro MOREIRA ALVES proferido no julgamento da ADI 493 (j. 25.06.1992): enquanto nesta são alteradas, por lei, as consequências jurídicas de fatos ocorridos anteriormente consequências estas certas e previsíveis ao tempo da ocorrência do fato , naquela a lei atribui novos efeitos jurídicos, a partir de sua edição, a fatos ocorridos anteriormente.
A aplicabilidade da Lei Complementar n.o 135/10 a processo eleitoral posterior à respectiva data de publicação é, à luz da distinção supra, uma hipótese clara e inequívoca de retroatividade inautêntica, ao estabelecer limitação prospectiva ao ius honorum (o direito de concorrer a cargos eletivos) com base em fatos já ocorridos. A situação jurídica do indivíduo condenação por colegiado ou perda de cargo público, por exemplo estabeleceu-se em momento anterior, mas seus efeitos perdurarão no tempo. Portanto, ainda que se considere haver atribuição de efeitos, por lei, a fatos pretéritos, cuida- se de hipótese de retrospectividade, já admitida na jurisprudência desta Corte.
(...)
Em outras palavras, a elegibilidade é a adequação do indivíduo ao regime jurídico constitucional e legal complementar do processo eleitoral, consubstanciada no não preenchimento de requisitos negativos(as inelegibilidades). Vale dizer, o indivíduo que tenciona concorrer a cargo eletivo deve aderir ao estatuto jurídico eleitoral. Portanto, a sua adequação a esse estatuto não ingressa no respectivo patrimônio jurídico, antes se traduzindo numa relação ex lege dinâmica.
É essa característica continuativa do enquadramento do cidadão na legislação eleitoral, aliás, que também permite concluir pela validade da extensão dos prazos de inelegibilidade, originariamente previstos em 3 (três), 4 (quatro) ou 5 (cinco) anos, para 8 (oito) anos, nos casos em que os mesmos encontram-se em curso ou já se encerraram. Em outras palavras, é de se entender que, mesmo no caso em que o indivíduo já foi atingido pela inelegibilidade de acordo com as hipóteses e prazos anteriormente previstos na Lei Complementar no 64/90, esses prazos poderão ser estendidos se ainda em curso ou mesmo restaurados para que cheguem a 8 (oito) anos, por força da lex nova, desde que não ultrapassem esse prazo.
Explica-se: trata-se, tão-somente, de imposição de um novo requisito negativo para a que o cidadão possa candidatar-se a cargo eletivo, que não se confunde com agravamento de pena ou com bis in idem. Observe-se, para tanto, que o legislador cuidou de distinguir claramente a inelegibilidade das condenações assim é que, por exemplo, o art. 1o, I, ‘e, da Lei Complementar no 64/90 expressamente impõe a inelegibilidade para período posterior ao cumprimento da pena.
Tendo em vista essa observação, haverá, em primeiro lugar, uma questão de isonomia a ser atendida: não se vislumbra justificativa para que um indivíduo que já tenha sido condenado definitivamente (uma vez que a lei anterior não admitia inelegibilidade para condenações ainda recorríveis) cumpra período de inelegibilidade inferior ao de outro cuja condenação não transitou em julgado.
Em segundo lugar, não se há de falar em alguma afronta à coisa julgada nessa extensão de prazo de inelegibilidade, nos casos em que a mesma é decorrente de condenação judicial. Afinal, ela não significa interferência no cumprimento de decisão judicial anterior: o Poder Judiciário fixou a penalidade, que terá sido cumprida antes do momento em que, unicamente por força de lei como se dá nas relações jurídicas ex lege , tornou-se inelegível o indivíduo. A coisa julgada não terá sido violada ou desconstituída.
Demais disso, tem-se, como antes exposto, uma relação jurídica continuativa, para a qual a coisa julgada opera sob a cláusula rebus sic stantibus. A edição da Lei Complementar no 135/10 modificou o panorama normativo das inelegibilidades, de sorte que a sua aplicação, posterior às condenações, não desafiaria a autoridade da coisa julgada.(grifos no original).
Se é escorreita a tese de que a inelegibilidade do art. 22, XIV, da LC no 64/90 não é sanção, o que ficou exaustivamente demonstrado ao longo do meu voto, inexiste lastro jurídico para rejeitar o aumento de prazo de 3 para 8 anos a fatos pretéritos.

Em consequência, verificado o exaurimento do prazo de 3 (três) anos, previsto na redação originária do art. 22, XIV, por decisão transitada em julgado, é perfeitamente possível que o legislador infraconstitucional proceda ao aumento dos prazos, o que impõe que o agente da conduta abusiva fique inelegível por mais 5 (cinco) anos, totalizando os 8 (oito) anos, sem que isso implique ofensa à coisa julgada, que se mantém incólume.
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Com isso não se está a franquear que o legislador estaria apto a estabelecer, a seu talante, sanções em franca inobservância das garantias constitucionais. Somente se admite esse alargamento dos prazos de inelegibilidade porquanto se parte da premissa de que não se está diante de sanções ou penalidades. A inelegibilidade consubstancia requisito negativo de adequação do indivíduo ao regime jurídico do processo eleitoral.

Ao revés: consoante bem pontuou o Parquet federal, em seu pronunciamento, devem ser expungidos do debate os argumentos ad terrorem, no sentido de que o legislador, caso chancelássemos as inovações da Lei da Ficha Limpa, estaria autorizado a criar prazos mais alargados e desarrazoados. Se eventualmente o absurdo se realizar, é mister dessa Suprema Corte, no exercício de sua jurisdição constitucional, invalidar atos normativos que desafiem a proporcionalidade, a razoabilidade e o abuso do poder de legislar. Não é essa, porém, a hipótese sub examine.

Por essas razões, voto pelo DESPROVIMENTO do recurso extraordinário.

Não se desconhece que o aludido projeto de lei iniciativa popular foi encampado por parlamentares, que assumiram sua “paternidade”.
Originalmente, o feito sub examine fora autuado como ARE, ao qual foi atribuído o no 785.068. page44image9088 page44image9408 page44image9568
Indigitados preceitos devem ser interpretados sistematicamente com o art. 14 § 3o, inciso I, que impõe, a cidadania brasileira, nata ou naturalizada, como condição de elegibilidade.

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