sábado, 19 de novembro de 2011

Inelegibilidade não é pena


 Na semana passada, o STF começou a julgar três ações  - ADC 29, ADC 30 e ADI 4578 - que discutem  a constitucionalidade da LC 135/2010, vulgo "Lei da Ficha Limpa". Apenas um dos onze ministros manifestou-se. O voto já foi postado aqui no blog. São duas as principais questões que o Supremo terá que resolver e que assombram as cabeças de profissionais do direito, eleitores e candidatos: a) a LC 135/2010 alcançará fatos que lhe são anteriores?; b) a inelegibilidade pode decorrer de condenação não transitada em julgado?

Muitos respondem negativamente a ambas as perguntas partindo de um pressuposto falso: o de que inelegibilidade é pena. Não é, não foi, e, como diria o filósofo Capitão Nascimento, nunca será. Explico.

Fixo como premissa que não existe definição de “pena” ou de “ineligibilidade” fora do âmbito do direito posto. Dizer que a natureza das coisas é suficiente para aclarar esses conceitos jurídicos é imaginar que no mundo natural seria possível encontrar fisicamente algo semelhante a uma “pena”. Você, estimado e-leitor(a), por algum caso já encontrou com uma delas na rua? Se sim, é bom se preocupar... As definições de pena e de inelegibilidade, portanto, serão extraídos das normas do sistema.

Começo lembrando que tanto para o TSE quanto para o STF a inelegibilidade não é pena.  Eis as palavras de ambos os tribunais:

Inelegibilidade não constitui pena. Possibilidade, portanto, de aplicação da lei de inelegibilidade, Lei Compl. n. 64/90, a fatos ocorridos anteriormente a sua vigencia.” (STF - MS 22.087/DF, rel. Min. Carlos Velloso, Pleno, DJ de 10/05/1996, p. 15.132)

A inelegibilidade, assim como a falta de qualquer condição de elegibilidade, nada mais é do que uma restrição temporária à possibilidade de qualquer pessoa se candidatar, ou melhor, de exercer algum mandato. Isso pode ocorrer por eventual influência no eleitorado, ou por sua condição pessoal, ou pela categoria a que pertença, ou, ainda, por incidir em qualquer outra causa de inelegibilidade”(Consulta nº 1.147/DF, rel. Min. Arnaldo Versiani, julgada em 17 de junho de 2010)


A intenção dos que equiparam inelegibilidade a pena é uma só: pleitear a aplicação dos incisos XXXIX, XL e LVII da CF/88, que estipulam, respectivamente, que “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal” e “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”, e “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

Ainda que fosse possível o alargamento que se pretende dar a institutos próprios do direito penal, a tese de que inelegibilidade seria pena é equivocada. Examinemos, como querem os que consideram inconstitucional a LC 135/2010, a matéria sob o ângulo penal. O que é pena para o direito criminal?

A primeira e óbvia noção para se chegar ao conceito de pena é que ela só nasce do cometimento de ato ilícito. Não por outra razão o Código Penal, ao cominar pena, primeiro descreve o fato a ser punido(“matar alguém”, “subtrair algo mediante violência ou grave ameaça” e assim por diante) para depois dar-lhe a reprimenda. O art. 121 do CP, por exemplo, reza o seguinte:

Art. 121. Matar alguém:
Pena - reclusão de 06 a 20 anos

As inelegibilidades criadas pela LC 135/2010 são como as penas? Nascem elas sempre de ato ilícito? Não.

A LC 135/2010, traz casos, como os do art. 1º, i, “k” e “q” em que o simples exercício de direito, como o de renunciar e o de se exonerar, acarreta inelegibilidade. É possível considerar ilícitos os atos dos governantes que renunciam ou dos membros do MP e do Judiciário que pedem exoneração ou aposentadoria voluntária? A respostas a essa pergunta, por óbvio, é negativa. Ora, se inelegibilidade pode surgir do exercício do direito, como considerá-la pena?

Tem mais. Há inelegibilidades nascidas do mero exercício da profissão(como no caso dos membros do MP e da Magistratura, a quem a CF/88 veda o exercício de atividade partidária), ou de condição pessoal do indivíduo, como o analfabetismo ou o parentesco com mandatários. Onde está a ilicitude nesses casos?

Poderia se argumentar que embora haja inelegibilidades decorrentes de caracteres individuais – como o analfabetismo – e de atos lícitos, também há as que nascem de ilícitos. Pergunto: o ordenamento jurídico dá-lhes tratamento diferente? Em outros termos: seriam as últimas tratadas mais gravosamente que as oriundas de atos lícitos? Não. O prazo de inelegibilidade imposto em virtude da prática de condutas é sempre de oito anos, como se vê nas alíneas do art. 1º, I, da LC 64/90 alterado pela LC 135/2010. Nem se diga que nas hipóteses em que a condenação seria oriunda de decisão de órgão colegiado o prazo seria aumentado, pois renovado com o trânsito em julgado. Transitada em julgado a decisão, dos oito anos será descontado o período entre o trânsito e a manifestação do colegiado. Essa é a única interpretação consentânea com o devido processo legal, já que interpretar de outro modo significa apenar aqueles que se utilizam do direito ao recurso ou criar a hipótese de inelegibilidade por prazo irrazoável. Voltarei ao tema em outro post.

Diz a Constituição que a lei regulará a individualização da pena(art. 5º, XLVI). Obedecendo a essa norma, o art. 59 do Código Penal dá nove critérios para o magistrado estabelecer a sanção. Qual é a possibilidade do magistrado graduar a inelegibilidade? Nenhuma. Em todos os casos, a sanção é de 08 anos. Se a inelegibilidade não pode ser individualizada, poderia ser considerada pena?

Fosse pena, deveria, no caso das relacionadas à sanção criminal, desaparecer com a prescrição da pretensão executória, a qual, nos termos do art. 110 do Código Penal, regula-se pela pena aplicada. A prescrição da pretensão executória impede a execução da pena e da medida de segurança. Apesar da pena ser extinta, o que ocorre com a inelegibilidade? Permanece intacta, assim como os demais efeitos secundários da condenação: a inclusão do nome no rol dos culpados, a revogação do sursis, a caracterização da reincidência se houver crime posterior, a interrupção a prescrição executória quando houver reincidência, a revogação da reabilitação e assim por diante1. Examinemos um exemplo concreto quanto à prescrição  da pretensão executória de pena de um ano para o crime de furto. A sanção prescreverá em quatro anos, a teor do art. 109, V, c.c o art. 110. E a reincidência? Pode ser considerada até cinco anos da data da nova infração e o cumprimento ou extinção da pena(art. 64 do CP). Já a inelegibilidade, perdurará por 08 anos.

Como já é possível vislumbrar, a inelegibilidade de pena não tem nada. Mesmo quando oriunda de condenação criminal, é dela mero efeito. Os que equiparam pena e inelegibilidade cometem o equívoco, com a devia vênia, de igualar toda sanção à pena. Nem toda consequência negativa ao cidadão é pena. Faço minhas aqui as palavras de Kelsen, no seu consagrado “Teoria Pura do Direito”. Para Kelsen, o Direito é concebido como uma ordem estatuidora de atos de coerção. A proposição jurídica que descreve o Direito toma a forma da afirmação segundo a qual, sob certas condições ou pressupostos pela ordem jurídica determinados, deve-se executar um ato de coerção, pela mesma ordem jurídica especificado. Dentre as espécies de ato de coação(ou sanção) está a pena, a inclusão de nome no rol de culpados e a inelegibilidade. Isso não significa que todos sejam idênticos. Segundo Kelsen, “o conceito de sanção pode ser estendido a todos os actos de coerção estatuídos pela ordem jurídica, desde que com ele outra coisa se não queira exprimir senão que a ordem jurídica, através desse actos, reage contra uma situação de facto socialmente indesejável e, através dessa reação, define a indesejabilidade dessa situação de fato”2

A tese da inelegibilidade como simples efeito da condenação é claramente albergada pelo TSE. Eis o que definiu o tribunal na Consulta 1147-09.2010

Não se trata, mais uma vez, de perda de direitos políticos, mas, sim, de inelegibilidade que não constitui pena, não se podendo pensar em afastá-la apenas porque, antes da vigência da nova lei, a respectiva condenação não trazia como consequência a inelegibilidade para certas hipóteses. A inelegibilidade não precisa ser imposta na condenação. A condenação é que, por si, acarreta a inelegibilidade. A decisão, por exemplo, de Tribunal de Contas que rejeita as contas de determinado cidadão não o declara inelegível. A inelegibilidade advém do disposto na alínea g do inciso I do art. 1º da LC nº 64/90. E é o que ocorre com todas as demais inelegibilidades, inclusive com as oriundas de processos criminais, de improbidade administrativa ou eleitorais”. (grifo nosso)

A doutrina também não trata da inelegibilidade como pena, mas como mero óbice ao exercício da cidadania. Por todos, veja-se o que ensina Pedro Henrique Távora Niess:

"Inelegibilidade é uma medida destinada a defender a democracia contra posíveis e prováveis abusos. A inelegibilidade consiste no obstáculo posto pela Constituição ou por lei Complementar no exercício da cidadania passiva, por certas pessoas, em razão de sua condição em face de certas circunstâncias. Se a elegibilidade é é pressuposto do exercício regular do mandato político, a inelegibilidade é a barreira intransponível a ele"(Direitos Políticos – Condições de Elegibilidade e Inelegibilidade, Saraiva, pp. 5-9)


Como se nota, os conceitos de inelegibilidade e de pena são absolutamente distintos. Diante disso, é possível afirmar que a LC 135/2010 não poderia alcançar fatos que lhe são pretéritos ou que inelegibilidades não poderiam ser impostas a partir de em decisões de órgãos colegiados em trânsito em julgado? Devagar com o andor, caro e-eleitor. A discussão da aplicação da LC 135/2010 é quase uma novela. Adianto que um dos seus protagonistas será a ADPF 144, em que o STF decidiu que se aplica ao direito eleitoral o art. 5º, LVII da CF/88, segundo o qual “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. E agora? Essa decisão matou parte da Lei Ficha Limpa? Cenas do próximo capítulo...

1 Vale ressaltar que a multa também não é atingida pela prescrição executória porque, pelo art. 51 do CP, é considerada dívida de valor.
2Teoria Pura do Direito, Trad. João Baptista Machado, 6ª ed. Coimbra: Armênio Amado, 1984, p. 71

  
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